A ciência está sob ameaça no Brasil. O entreguismo, a submissão ao estrangeiro, a falta de visão de nação e os cortes minam o desenvolvimento científico e tecnológico. É o que TUTAMÉIA ouviu do premiado físico Rogério Cézar de Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp.
Ele afirma que essa ameaça ocorre justamente quando o país “estava prestes a alcançar um limiar razoável”, após um período de projeção razoável e de investimentos. No governo Lula, avalia, “houve uma decisão de afirmação internacional; esse momento passou. A política externa brasileira é de entreguismo. Não é mais uma política de afirmação como nação. Hoje estamos seguindo os demais, principalmente os EUA”.
Para Cerqueira Leite, a política internacional brasileira “tem reflexo na capacidade de pensarmos sobre a questão da ciência e tecnologia”. Hoje, segundo ele, essa política é de “submissão na aceitação do capital internacional como uma espécie de domínio no Brasil. O país, define, “já é meio colônia”.
“Estamos acompanhando os países mais atrasados no mundo na questão da consciência da importância da ciência e tecnologia para o bem-estar do povo, para o desenvolvimento econômico, para tudo que é importante para o prestigio de um país. Atualmente os ministérios que mandam no Brasil são os que comandam o dinheiro e eles não perceberam importância da ciência e da tecnologia. Infelizmente os cortes do governo nos últimos dois anos foram muito significativos e comprometeram trabalhos já em andamento e novos possíveis ganhos em competência e qualidade”.
PSICOLOGIA DE VIRA-LATA
Cerqueira Leite identifica nesse desleixo do governo com a ciência uma “psicologia de vira-lata”. “O Brasil acha que não tem o direito de concorrer, de se auto-afirmar”.
Como exemplo, ele cita uma decisão da Vale –“uma empresa nacional e com história de nacionalismo”–, que foi buscar um resultado de pesquisa na Austrália, quando, no Brasil, havia condições e equipamentos muito mais avançados.
“Foram buscar lá, porque é mais bonito comprar coisa lá fora. Várias empresas vão para os EUA admitindo que o potencial brasileiro de produzir ciência e tecnologia não vale a pena, não é adequado”. O físico defende que, ao contrário dessa visão colonizada, “certas universidades brasileiras estão mais preparadas para certos tipos de análises”.
“O empresário pensa no seu lucro. Muitos aderem à produção externa porque é mais barato”, declara.
EXECUTIVOS ARRIVISTAS
Cerqueira Leite observa uma mudança radical no perfil dos comandantes de empresas. “Hoje eles são muito mais conectados com o capital financeiro. Não tem mais o Antônio Ermírio de Moraes. Hoje tem executivos, que não têm os mesmos compromissos que os capitães de indústria tinham, compromissos com a nação”.
E acrescenta: “Todo o executivo é, no fundo, um arrivista, porque não é com o dinheiro dele que ele está lidando. É dinheiro do outro. Isso muda a psicologia do indivíduo, seu nível de responsabilidade. Eles mudam facilmente de empresa, para uma completamente diferente, para ganhar mais. Não são como o empresário que criou a empresa, ou o que o pai criou. É uma outra atitude da própria empresa em relação à nação. Poucos têm esse conceito de nação. Vejo um desligamento muito grande com o país nesses executivos que não são empresários”.
TECNOLOGIA NUCLEAR
Merecedor de vários prêmios por sua trajetória como cientista, Cerqueira Leite fez doutorado em física pela Universidade de Paris e atuou nos Laboratórios Bell, desenvolvendo várias pesquisas, especialmente com laser, nos anos 1960. Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, ele lembra que chegou a debater, durante o governo Geisel (1974-1979), a questão do desenvolvimento da tecnologia nuclear no país.
Diz que o Brasil não tem a tecnologia porque não quer. “O importante não é ter a bomba, é ter a tecnologia nuclear”, afirma, defendendo a necessidade de um projeto de pesquisa na área. Admite que a posição do Brasil no mundo seria mais respeitada se tivesse havido o investimento no setor.
“Mas o Paquistão tem a bomba e ninguém dá bola para o Paquistão. O que importa, no fundo, é ser dono da tecnologia, saber fazer coisas. Isso é o que manda no mundo hoje. Não é bomba”, assevera.
LÁSTIMA COM FHC
Engenheiro eletrônico formado pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), ele considera que, durante o regime militar, houve um pouco mais de percepção sobre a importância vital da ciência para o Brasil. Depois, José Sarney também investiu na área –foi no governo dele (1985-1990) que teve início a construção do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, um marco no desenvolvimento científico brasileiro que teve participação crucial de Cerqueira Leite.
“Foi um momento bom [o do governo Sarney]. Depois, houve mudança. Fala Cerqueira Leite: “Fernando Henrique Cardoso foi uma lástima para a ciência brasileira. O governo dele. Ele, pessoalmente, foi pior. Nunca deu bola, nunca achou que fosse importante [a ciência]. Não deu nenhuma importância para a atividade de ciência e tecnologia. [O laboratório sincrotron] era para ser executado em seis anos e levou dez”.
MAIOR OBRA DE CIÊNCIA DO MUNDO
Foi a partir dessa decisão de construir um laboratório, há 30 anos, que o país foi se capacitando a desenvolver agora a maior obra de ciência do mundo: o Sírius, o novo acelerador circular de elétrons que, navegando praticamente na velocidade da luz, produzem um tipo de radiação denominada luz sincrotron.
O uso dessa megamáquina possibilita análises detalhadíssimas de todo o tipo de material, proporcionando descobertas em variados campos da ciência (biologia, química, física etc). No mundo todo existem pouco mais de quatro dezenas de mecanismo desse tipo.
De tamanho e formato semelhante a um campo de futebol, a obra tem 68 mil metros quadrados e está orçada em meio bilhão de dólares. Localizada em Campinas (como o primeiro laboratório de luz sincrotron), ela conta com 200 engenheiros e deve ficar pronta neste ano. Foi iniciada em 2015, no governo Dilma Rousseff. Quarenta indústrias estão envolvidas no projeto, que utiliza fornecedores nacionais em mais de 85% de seus itens.
Cerqueira Leite assegura que o novo laboratório “é o mais avançado, mais pretensioso e mais potente do mundo. Ele só foi possível porque aquele pessoal foi treinado no Brasil na primeira construção, no governo Sarney. Ele foi concebido no Brasil, com grande participação da indústria nacional. Nesse segundo, aumentou muito a participação nacional”.
A construção envolve desafio inéditos. Por exemplo, não havia no mercado cimento com a perfeição necessária para a obra. Foi preciso desenvolver novas características para o produto –“um esforço monumental”, diz o físico.
Se no antigo laboratório já trabalham cientistas de 28 nacionalidades, no novo esse número deve ser muito maior. “A atração de pesquisadores vai ser monumental. O que se vai fazer aqui não será possível de ser feito em outro lugar do mundo”, afirma.
UNIVERSIDADE PÚBLICA AMEAÇADA
Cerqueira fala ao TUTAMÉIA em sua casa, em Campinas. Ali ele convive com obras de arte garimpadas por décadas e uma impressionante coleção de cds de música clássica –uma paixão que cultiva desde a adolescência, quando aprendeu a entrar como penetra nos concertos do Theatro Municipal de São Paulo. É com essa estante de cds ao fundo que ele concede a entrevista.
Agora, fala sobre ataques à universidade pública:
“A ameaça à universidade púbica é permanente. A direita sempre pretendeu transformar a universidade pública em privada. O raciocínio [ele lembra de Paulo Maluf] é: porque o meu filho, que é filho de gente rica, vai para a universidade e não paga? Eles [os de direita] não percebem que é uma questão de nação. Por que existe universidade? Porque a sociedade precisa de médicos, de engenheiros de físico, até de economistas –não garanto muito, mas talvez precise (risos). Não se faz uma universidade para fazer o aluno feliz, para dar uma chance de ele subir na vida. [Se faz uma universidade] porque a sociedade precisa dessas profissões. Exigir que esse indivíduo, que [foi para a universidade] por causa dessa necessidade da sociedade, pague é uma perversão, no fundo. Não é muito honesto exigir que pague. É um princípio. É uma questão de se pensar primeiro no coletivo, e não no interesse do indivíduo. Quem pensa no interesse do indivíduo acha que a universidade tem que ser paga; quem pensa no interesse da sociedade acha que a universidade deve ser pública”.
CONTRA SAVONAROLAS
Rogério Cezar de Cerqueira Leite nasceu em 14 de julho de 1931 em Santo Anastácio, no Pontal do Paranapanema, São Paulo. É filho de um bacharel em direito pela faculdade do Largo de São Francisco simpático às ideias comunistas. Em 2016 publicou “Um Aprendiz de Quixote” (Verbena Editora), uma resumida autobiografia.
No livro, ele trata de mazelas pessoais, de seus avanços profissionais, de vitórias e de derrotas. Bastidores do regime militar, da criação da Unicamp, da pesquisa pelo mundo estão pincelados nas páginas. Conta que conviveu com familiares de diferentes comportamentos: uma avó rígida e uma tia que cultivava a boemia em casa.
“Talvez eu seja um pouco o produto dessas experiências tão antagonicamente contrastantes. Um pouco esnobe, um pouco simplório, um pouco moralista. Ou eu seria muito de cada uma dessas qualidades? Tem dia que penso que não”, escreve.
Nessa autobiografia, ele se define como “encrenqueiro”. O subtítulo do livro é “Memórias de um Arruá”, que significa arisco, desconfiado, indócil, raivoso.
De fato, sua trajetória é cheia de embates e permeada pela defesa da ciência e tecnologia nacional. Enfrentou o ultraliberal Roberto Campos no debate, nos anos 1980 e 1990, em defesa da lei de informática e da definição de empresa nacional. Seu alvo sempre foi a elite entreguista do país.
Mais recentemente, na “Folha”, escreveu texto contundente de ataque ao juiz Sérgio Moro, comparando-o a Girolamo Savonarola, o fanático frei dominicano da Florença no final do século 15. Messiânico e moralista, atacava os artistas do Renascimento, os que ele definia como hereges e corruptos e incitava a queima de livros que classificava como impróprios. Acabou ele próprio na fogueira.
Moro protestou contra o artigo e até sugeriu um pedido de censura nas entrelinhas de sua resposta ao jornal, onde Cerqueira é membro do conselho editorial.
Ao TUTAMÉIA, o físico comenta a operação Lava Jato, comandada por Moro _ele não é contra as investigações, mas aos seus excessos. Observa que o “ sucesso dos savonarolas” impulsiona outras manifestações na mesma linha:
“A direita cresceu no Brasil; cresceu o fascismo”, afirma. No entanto, para o físico, trata-se de uma onda, que “vai embora depois”. “Não estou muito preocupado. O Brasil já demonstrou em outras ocasiões que tem tutano suficiente para resistir a essas coisas e para reagir. Incomoda bastante, mas não vai prevalecer. Não acho que se deva temer aqui acontecimentos como os que aconteceram nos anos 30 na Alemanha. Isso não acontece aqui e não acontece mais na Alemanha também”.
ALCKMIN E BOLSONARO
Na visão de Cerqueira Leite, Lula continua sendo rejeitado pela elite e encontrará dificuldades: “Ele continua sendo um operário, continua sendo de fora; engoliram uma vez, mas agora…”.
E emenda: “Tenho muito mais medo do Alckmin do que do Bolsonaro”. Para ele, o tucano “é mais estável, mais aceitável” e, nesse sentido, mais “perigoso” de permanecer no poder. Bolsonaro, se subisse, caía logo; já Alckmin, se subir, ficará por muito mais tempo, considera.
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