Numa cadeira de rodas, sem as duas pernas, Fadi Abu Salah arremessava uma pedra com uma funda. A foto de seu gesto de resistência resoluta e desesperada correu o mundo. Passou a ser uma síntese da brava luta palestina. Aos frangalhos, ele enfrentava militares superarmados do outro lado da cerca. Já tinha perdido as duas pernas num bombardeio em 2014.

Logo depois de atirar a pedra, Salah foi assassinado por um atirador de elite –um “sniper”– do exército israelense na Faixa de Gaza. Ele foi um dos 60 mortos do massacre promovido por Israel na segunda, 14/5, que deixou 2.771 feridos, 1.360 atingidas por tiros, 400 por estilhaços e 980 com problemas por inalação de gás. Oito crianças de menos de 16 anos foram mortas. Naquele dia, os médicos do Crescente Vermelho fizeram ao menos trinta amputações de pernas ali ao lado da fronteira. Um médico e um jornalista morreram; paramédicos foram feridos.

“É um crime de guerra”, define Reginaldo Nasser, professor de relações internacionais da PUC-SP, enquanto vai relatando e comentando os fatos em entrevista ao TUTAMÉIA. Especialista no tema, ele diz que o emprego de snipers derruba a argumentação recorrente de que as mortes são “efeitos colaterais” de atos de defesa ou erros incontornáveis de ações militares.

Desta vez, o que as imagens mostram são pessoas desarmadas sendo abatidas a tiros de forma deliberada. Não houve lançamento de foguetes contra Israel, não havia bombas nem facas nas mãos de palestinos; apenas pedras. Sem uma aparente organização e sem liderança, eles foram sendo atingidos em meio a um protesto no momento em que, em Jerusalém, os EUA inauguravam sua nova embaixada –confrontando a ONU e a imensa maioria da comunidade internacional, que considera Tel Aviv a capital de Israel.

Na conversa, Nasser trata do contexto histórico, das mudanças políticas das últimas décadas na região e das razões do avanço da direita –fatores que ajudam a explicar o silêncio e a indiferença de governos em relação à causa palestina. “Hoje a direita é muito mais internacional do que a esquerda”, avalia.

Ao mesmo tempo, ele observa uma solidariedade aos palestinos vinda de variados movimentos sociais, que se identificam com a resistência daquele povo sufocado militar e economicamente. Sintomaticamente, enquanto transmitíamos a entrevista pela internet, os comentários falavam em “Marielle Presente!” –fazendo uma ponte entre Gaza e o Rio de Janeiro ocupado militarmente.

O professor é cético sobre os desdobramentos desse mais recente massacre, embora identifique um crescente incômodo em certos círculos liberais dos países ricos em relação à escalda israelense contra os palestinos. Especialmente nos EUA, diz ele, “não há consenso; há um incômodo geral, cisões na elite”, já que a “assimetria [entre israelenses e palestinos] é muito grande e a crise humanitária salta aos olhos. Israel vai se enfraquecendo em termos de legitimidade e tem aumentado o apoio aos palestinos nos Estados Unidos”.

É o que explica, na sua visão, a cobertura incisiva do “The New York Times” dos assassinatos desta semana. É possível também, ponderamos, que o jornal tenha adotado um tom mais crítico como forma de atingir Donald Trump –que decidiu mudar a embaixada e que segue em confronto com a mídia norte-americana. No vídeo acima, há trechos da cobertura do “Times” e de outros filmes sobre a questão. Assim como dicas de leitura e de pesquisa.

COLONIALISMO E DESAPROPRIAÇÃO

“É o conflito mais prolongado da história. Os palestinos têm uma história de massacres”, afirma Nasser. Ele narra as mudanças na região. Conta do processo de ocupação das terras palestinas, do aumento da emigração de judeus após a Segunda Guerra Mundial. “Há um processo gradativo, progressivo de expropriação dos palestinos. Em 1947, quando a ONU declara a partilha, os judeus tinham 7% das terras; com a partilha, saltam para 53%. O que a ONU fez foi uma expropriação brutal dos palestinos. Com a criação do estado de Israel mais ainda.  E na guerra de 1967 mais ainda. De lá se prolongou. Hoje a comunidade palestina é um pontilhado. A assimetria é enorme e cresceu ao longo dos anos”, diz.

Nasser explica que houve um processo de “colonialismo por povoamento. Foi o que os norte-americanos fizeram com os índios, o que foi feito na Austrália. É uma ocupação muito mais efetiva. Israel é um modelo disso. Houve a expulsão de 700 mil palestinos com a criação do Estado de Israel”.

O professor enfatiza que o processo de desapropriação dos palestinos foi também de judialização –com entrega de terras somente a judeus. E recomenda a leitura do livro o pesquisador judeu Ilan Pappé “A Limpeza Étnica da Palestina” (Editora Sundermann 2016). Pappé pesquisou esse período histórico e hoje é proibido de entrar em Israel.

CAMPO DE CONCENTRAÇÃO

E tem a Faixa de Gaza. Nasser lembra que um ex-primeiro ministro inglês já disse que o lugar é “uma prisão a céu aberto”. O professor tem uma definição mais aguda: “É um campo de concentração a céu aberto”.

O território tem o tamanho de Parelheiros (bairro na zona sul da cidade de São Paulo) e nele vivem um milhão e meio de pessoas, em alta densidade demográfica e com a economia estrangulada. O desemprego chega a 50%. Há restrições de uso do mar para a pesca. Eletricidade e água são controladas. “O cotidiano lá é de violência, privação, miséria. É uma situação completamente deplorável”.

Criado com uma aura de esquerda, com a valorização da produção comunitária dos kibutz, Israel passou por um processo de direitização na política –como, de resto, vive o mundo todo. “Ariel Sharon seria hoje de centro-esquerda”, resume Nasser, para quem a esquerda também pode ser colonialista. E faz ponderações. Ressalta que foi nos governos de esquerda que a ocupação israelense aumentou. Lembra que o processo é semelhante nos EUA, onde guerras e invasões foram promovidas com democratas na Casa Branca.

TRUMP IGUAL A OBAMA

“No concreto não tem diferença. Trump não significa mudança em relação a Obama. Jerusalém está sendo ocupada sistematicamente, independentemente de ser capital ou não. Está havendo uma expropriação brutal dos palestinos de Jerusalém, com todos os governos. Com governo Obama aumentou a venda de armas. Hoje tem uma radicalização, com os evangélicos se ligando a sionistas, como ocorre no Brasil”, declara.

Nasser discorre sobre as mudanças políticas envolvendo os atores desse conflito histórico. “Até o final da década de 1970, a esquerda tinha a hegemonia do movimento palestino. Não era muçulmana, mudou de lá para cá”.

Ele recorda da aproximação que Israel e Estados Unidos fizeram com movimentos muçulmanos naquele momento. Ronald Reagan apoiava os muçulmanos contra o que chamavam de “materialismo ateu”. “O Hamas começa a aparecer nesse contexto”, afirma.

E aí lembra de todos os movimentos que tentaram atingir, dizimar comunistas durante o século 20, tentando colar os rótulos de antissemitismo e bolchevismo. Foi assim, por exemplo, no período inicial do nazismo. A propósito, ele cita o romance “Complô Contra a América”, de Philip Roth, uma ficção tendo como pano de fundo uma derrota de Franklin Roosevelt contra Charles Lindbergh, aliado nazista na América.

MARIELLE PRESENTE!

Para Reginaldo Nasser, “o que é preocupante é a difusão desse estilo de repressão que Israel vende para o mundo. O que acontece na palestina são laboratórios, experimentos onde eles criam as armas, as técnicas depois vendem para o mundo inteiro, até para os EUA”.

Quando terminam as guerras árabes (a última foi em 1973), que eram as tradicionais, passa a existir um outro tipo de guerra na região. Agora ela acontece nas cidades, em lugares de alta concentração urbana, com técnicas de guerrilha, posições em prédios. Isso tudo foi causando aprimoramento nas estruturas repressivas israelenses.

Nasser enfatiza que não se trata só de repressão: é preciso gerir todo o pessoal subjugad, fazendo-os produzir, circular num espaço militarizado, repleto de pontos de checagem, revistas etc. Assim, ele avalia que no Brasil –e nos diversos países do mundo que vivem situações similares– brota uma simpatia em relação aos palestinos e sua obstinada resistência. “Uma das hipóteses é que há identidade”, declara.

Ele se recorda da solidariedade que Marielle manifestou em relação aos palestinos. Sem considerar a questão macro, geopolítica, “é a mesma coisa no dia a dia: é privação de direitos, é ocupação, é força militar, é muito parecido”.

DIREITA SINCRONIZADA

Nasser lamenta que, apesar disso, muito do aspecto internacional da esquerda se perdeu com o tempo. “Hoje a direita é muito mais internacional do que a esquerda, infelizmente. Ele estão internacionalizando, expulsam os muçulmanos, têm cartaz sobre o Trump igual ao de lá, defendem a eleição da Le Pen na França. Eles estão sintonizados. Esse golpe aqui no Brasil é articulação internacional, financiado. As pessoas são preparadas para escrever, falar, treinar, doutrinar.”

Nesse quadro, em que “a luta dos palestinos é internacional”, ele defende o boicote a Israel, movimento que ele considera muito importante e que surge fora das instâncias institucionais.

Nesse capítulo, Israel obteve vitórias –inclusive com o governo brasileiro.

O professor diz que participou de todos os protestos contra o golpe de 2016 no Brasil, mas não deixa de registrar sua opinião de que “a política externa de Lula com Israel e Palestina deixou a desejar. Israel hoje faz parte do Mercosul. É o único país de fora da América Latina que tem comércio livre com o Mercosul; entrou em 2009, um acordo assinado por Celso Amorim. Precisa ter uma política aqui dentro de pressão”.