O assassinato de Zuzu Angel, travestido de acidente, foi talvez o crime da ditadura militar que mais escancarou o caráter brutal, vingativo, incontrolável dos esbirros que ocupavam o aparato repressivo a serviço do golpe.

Ela não era uma militante, uma esquerdista, nem sequer uma oposicionista: era uma mãe que buscava seu filho. E tinha o valor, a coragem, a decisão inquebrantável que só as mães em busca de sua prole, em defesa de seus rebentos, têm.

Neste 14 de abril contam-se 42 anos do dia do crime. Há dois anos, durante o projeto CORRIDA POR MANOEL, que desenvolvi em São Paulo em homenagem ao operário metalúrgico MANOEL FIEL FILHO, também ele assassinado em 1976 pela ditadura militar, fizemos uma celebração esportiva relembrando a vida e a luta de Zuzu.

Sobre aquele momento, aquela jornada, escrevi um texto no blog que fazia então, contando minhas aventuras corridas.

A cerimônia, a caminhada que fizemos então, teve a participação da filha de Zuzu, a jornalista Hildegard Angel, como você pode ver visitando a minha publicação original, CLICANDO AQUI.

Participantes da caminhada em homenagem a Zuzu Angel, em março de 2016; ao centro, de camiseta vermelha, Hildegard, filha de Zuzu

Dela, destaco as palavras de Hildegard, que disse, anunciando a nossa caminhada:

“Foram tantos que morreram de forma brutal, cruel, porque eram defensores do estado de direito, do estado democrático. Quando se homenageia uma vítima, lembramos a história de todas as vítimas, um herói são muitos heróis.

Nós estamos lembrando todos os brasileiros. Nós estamos lembrando desde Tiradentes, desde o mártir Tirandentes. É o fio que você puxa e através dele você visita a história do Brasil, visita a história de todos os tiranizados, vai até os quilombos, vai até todos os favelados, vai até os perseguidos pela polícia, você vai a todos aqueles que sofrem injustiça, aos meninos de Santa Maria, aos sequestrados que não aparecem”.

Vamos sempre encontrar motivos para homenagear o heroísmo, o heroísmo do brasileiro, o brasileiro que sofre e que se cala, que tem de ter alguém que desperte nele o desejo, a coragem, o ímpeto de falar, de denunciar e de se manifestar”.

E sigo, nesta homenagem, trazendo a seguir o texto produzido por FERNANDA POMPEU e ilustrado originalmente por FERNANDO CARVALL na série “Vivos”, que publicamos como homenagem aos homens e mulheres que lutaram e lutam pela democracia no Brasil.

 ELA PERGUNTA COMO QUEM DOBRA UM SINO

Antes de ser uma designer internacional de moda, Zuzu Angel (1921-1976) foi costureira – dessas que se debruçam sobre a máquina Singer e tratam agulha e linha com dedos de anjo. Antes de abrir uma loja de roupas no badalado Ipanema carioca, ela nasceu em Curvelo – uma das portas de entrada do sertão mineiro. Antes de se tornar persona non grata para os militares da ditadura, ela era a mãe de três filhos – duas moças e um rapaz, o Stuart Angel.

O itinerário de sucesso de Zuzu Angel se tornou trágico quando, um ano depois do desaparecimento de seu filho Stuart Angel (1946-1971), ela leu uma carta escrita pelo preso político Alex Polari de Alverga. Nela, Alex conta ter testemunhado o assassinato do jovem de 26 anos nas dependências do Cisa – Centro de Informação da Aeronáutica, na Cidade Maravilhosa. Angel era quadro de direção do MR-8 – Movimento Revolucionário Oito de Outubro – um dos vários pequenos grupos de resistência armada. Diz a carta:

Consegui com muito esforço olhar pela janela que ficava a uns dois metros do chão e me deparei com algo difícil de esquecer: junto a um sem-número de torturadores, oficiais e soldados, Stuart, já com a pele semiesfolada, era arrastado de um lado para outro no pátio, amarrado a uma viatura e de quando em quando obrigado, com a boca quase colada a uma descarga aberta, a aspirar gases tóxicos que eram expelidos.

A partir da leitura da carta, Zuzu Angel se tornará incansável e irredutível na denúncia do assassinato do filho e na procura de seu corpo. Enterrar ou cremar corpos amados é direito básico e inalienável do ser humano. Somos – até aonde eu sei – a única espécie a fazer isso. Trata-se de um ritual de homenagem e encerramento.

Que digam, com lágrimas e propriedade, familiares e amigos dos desaparecidos durante a ditadura militar e nas favelas e periferias de hoje. Mães de Stuarts e Silvas se igualam no pranto. Zuzu Angel se tornou símbolo da mãe à procura do corpo do filho por tenacidade própria, mas também por suas circunstâncias. Já explicou o filósofo espanhol Ortega y Gasset: Eu sou eu e minhas circunstâncias.

Inteligente e bem relacionada, ela soube tirar partido da dupla nacionalidade do filho (brasileira e americana), chegando a entregar um dossiê para o então secretário americano Henry Kissinger. Também mobilizou algumas celebridades de Hollywood. Estas a conheciam pela excelência de seu corte e costura. Mas tudo isso foi em vão, pois as autoridades brasileiras negavam inclusive a prisão do rapaz. Seu rosto continuava impresso em cartazes de Procurados.

Zuzu estampou seu protesto e sua dor nos tecidos em que trabalhava. Se antes eles eram cheios de cor e de alegres motivos tropicais, agora vinham com pássaros engaiolados, anjos amordaçados e balas de canhão. Há quem diga que com essa ação, ela inaugurou a primeira coleção de moda política no Brasil. Quem passasse por ela dando bom dia, ouviria: Você pode ajudar a encontrar o corpo do meu filho?

Contam também que, numa viagem aérea, minutos antes da aterrissagem, ela tomou o microfone da comissária e passou o seguinte recado aos atônitos passageiros: Vocês vão descer no Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro, Brasil. Saibam que neste país torturam e matam jovens estudantes.

Firmeza e insistência cessaram na manhã de 14 de abril de 1976. Na saída do túnel Dois Irmãos, na Estrada da Gávea, o carro de Zuzu bateu na mureta de proteção e capotou. Ela morreu na hora. Um tempo antes, ela havia deixado uma carta com o compositor Chico Buarque, na qual avisava: Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho.

Brinde: Do Chico Buarque para Zuzu Angel:

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar.