As primeiras imagens de “Os Deuses Malditos”, de Luchino Visconti, mostram o fogo moldando o aço. É do trabalho das usinas siderúrgicas que a família do barão Von Essenbeck extrai a riqueza exibida no seu exuberante castelo em festa.
O jantar de gala acontece na noite de 27 de fevereiro de 1933 –o dia do incêndio no Reichstag, o parlamento alemão. Hitler, que tramara o atentado, acusou os comunistas, e o episódio serviu de pretexto para a avalanche nazista, com a brutal eliminação física de seus opositores.
A escalada autoritária explode também nos salões do barão do aço alemão. O velho capitão de indústria cede o mando das empresas a aliados do emergente poder hitlerista. Começava o processo de privatização do Estado, que levou a Alemanha a se tornar uma potência econômica transformada em máquina de guerra. Das usinas de Von Essenbeck sairão agora armamentos essenciais à política militar expansionista do país.
Um personagem do filme resume o que está acontecendo: a velha ordem está sendo reduzida a cinzas e as mudanças estão sendo feitas de forma a ter uma aparência de legalidade. A simbiose do nazismo com as grandes empresas criou monopólios fortíssimos e tirou o país da penúria imposta pelo Tratado de Versalhes. Deixou um legado de atrocidades históricas –e marcas que continuam imperando.
Quando esteve no TUTAMÉIA, o professor Luís Gonzaga Belluzzo falou do avanço reacionário no mundo e lembrou da experiência nazista. Quem quiser entender aquele período não precisa ler livros; basta ver “Os Deuses Malditos”, afirmou. O filme, disponível na internet, entrou em cartaz em março na retrospectiva Visconti no CineSesc em São Paulo. A imagem do início é de cena do longa.
É uma aula de história. Com seu olhar de comunista, Visconti desdobra a ascensão nazista pela saga da fictícia família do aço. No castelo dos Von Essenbeck, a suástica vai ganhando cada vez mais espaço na decoração, enquanto uma disputa mortal toma conta dos barões e prepostos de Hitler.
O que nos faz lembrar de outra recomendação do professor Belluzzo: “Behemoth: The Structure of National Socialism -1933-1944”, de Franz Neumann. O livro foi escrito pelo cientista político e advogado alemão, em plena vigência do nazismo, durante o seu exílio nos EUA. Disseca a construção do governo, a ideologia da supremacia ariana, as razões alegadas para a perseguição aos judeus, os carteis e monopólios que se beneficiaram de todo o processo. E de como o papel da justiça foi crucial nessa trajetória dantesca.
Descrevendo a ascensão nazista, nos anos 1920, Neumann afirma: “No centro da contra-revolução está o judiciário”. Mais adiante: “Como um instrumento para fortalecer um grupo político às custas de outros, para eliminar inimigos e apoiar aliados políticos, a legislação assim ameaça as convicções fundamentais sobre as quais se baseiam as tradições de nossa civilização”. A politização da Justiça pavimentou o caminho para o nazismo, assinala.
O autor lembra, em determinado ponto, quando o partido hitlerista deu início a uma violenta propaganda contra a corrupção –apenas de social democratas e judeus. Como resultado, houve a aceleração da concentração de capital associada ao poder político e militar. Hjalmar Schacht, ministro de Hitler, relata alguns dos bastidores dessa história em “Setenta e Seis Anos de Minha Vida”.
A propaganda nazista se empenhou em escamotear a crescente concentração de riqueza produzida pelo regime. A lógica alardeada era simples: a Alemanha e a Itália eram formadas por raças proletárias cercadas por democracias capitalistas, plutocratas e judaicas.
Na verborragia nazista, aquela era uma guerra do poder do dinheiro (os países aliados) contra o trabalho (os países do Eixo). O discurso manipulador sensibilizou as massas, as classes médias urbanas, retirando delas o sentimento de humilhação reinante pós a derrota na Primeira Guerra. O empuxo militar, atacou o desemprego e fortaleceu Hitler _que tratou de assassinar no trajeto seus desafetos.
Uma das mais intensas sequências de “Os Deuses Malditos” trata do morticínio da Noite dos Longos Punhais. Na madrugada de 30 de junho para 1º de julho de 1934 tropas hitleristas assassinaram 85 pessoas –leais a seu rival Ernst Röhm, que comandava um forte grupo paramilitar. Hitler eliminava seus adversários sem pestanejar. Assim como ocorre nos intestinos das empresas do barão do aço.
E nós com tudo isso? Ver Visconti e ler Neumann ajudam a pensar o agora. Acendem alertas. Nossa democracia está despedaçada, a Justiça não esconde que tem lado e as eleições irrestritas estão sob elevado risco. Não dá para ficar calado enquanto a goebbelização avança a galope. De início, como diz o dramaturgo, acharam que só os comunistas seriam varridos do mapa.
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