“A mudança onde 24% [apoiam Bolsonaro] não é uma verdadeira mudança geral. É uma alteração no volume. É surpreendente, do ponto de vista psíquico, e um pouco inesperada a perseveração de 24% da população. É muita gente omitindo que teve covid, que diz que foi um resfriado, que é contra o teste, a vacina. A verdadeira mudança vai estar no próximo governo”.
A avaliação é do psicanalista Christian Dunker ao TUTAMÉIA. Professor titular do Instituto de Psicologia da USP, ele está lançando “Lacan e a Democracia” (Boitempo, 312 páginas). Nesta entrevista, ele fala do livro e da situação do país neste ano eleitoral (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
“Há uma reformulação na atitude cada vez mais isolável dos bolsonaristas. São reações em que uma certa convicção, que a gente imaginava fosse se transformando com os dados com a CPI, com as intervenções externas, com as opiniões continuadas de cientistas. A gente imaginava que, quando houvesse um certo arrefecimento da tensão social, do antagonismo isso teria algum impacto na mente das pessoas, na atitude geral. Que fosse para um silenciamento, para um momento de dúvida, uma abertura para o diálogo”, afirma.
Não foi o que aconteceu. “Formas mais abreviadas da Covid estão sendo negadas por pessoas que efetivamente, em algum nível, sabem que contraíram a doença. Isso atrapalha os dados. Fortalece uma certa convicção delirante que isso não é perigoso, não me afeta. E isso é muito preocupante. É o estado mental de uma quantidade expressiva e aparentemente estável de pessoas. Não está se mexendo conforme o esperado”.
“Há uma tradição de aceitação da vacina. Mas a quantidade de negacionistas ainda é muito alta. É um prejuízo para todo mundo. Como uma minoria consegue atrapalhar muito as coisas. Estamos num momento de confusão, de refazimento de atitudes, onde prosperam apoiadores de natureza religiosa que têm um forte peso na situação que a gente está enfrentando”, diz.
ERRO BOÇAL E DESMORALIZAÇÃO
“Eu convivo com muita gente da Faria Lima, investidores, gente de banco. Gente mal-intencionada e bem-intencionada. Esses caras são pagos para produzir cenários. E houve o erro bizarro, boçal de eleger Bolsonaro. Essa turma perdeu moral cognitiva. Eu não sou ninguém na fila do pão. Sou um psicanalista. Você, meu caro, só faz isso [cenários]. Você convictamente disse: voto no Bolsonaro, porque os investidores, porque a Bolsa, porque o Guedes etc. Você foi enganado? Como pode? Então, há dentro do empresariado, principalmente do pessoal de finanças, uma desmoralização brutal. E os cálculos, os estudos? Não estamos brincando. São bilhões. Deu errado, deu muito errado”, diz.
Para Dunker, essa desmoralização está por trás dos “dos resultados pífios do Dória, dos partidos inteiros desaparecendo, das figuras consagradas que foram moídas”.
Ele segue: “Acharam que iam dar o golpe, chegar ao poder e tomaram um golpe interno. Agora é difícil acomodar porque precisa de uma outra posição, para onde fugir? Não tem a terceira via. Temo que na hora H alguma estripulia seja armada”.
GOLPE EXAGERADO E INGENUIDADE MENOR
Na avaliação do psicanalista, o processo eleitoral deste ano terá diferenças em relação ao de 2028:
“A eleição de Bolsonaro foi a primeira em que a gente teve participação de whats app, redes sociais, robôs. Se aplica um golpe desses uma vez. Na segunda vez, se parte de uma outra configuração. Estamos mais prevenidos. Tem vários instrumentos para pegar fake news. Tiraram o twitter do Trump, tem Sleeping Giants. São dispositivos que podem ser aperfeiçoados, ter marcos regulatórios. Mas não estamos na ingenuidade em que estávamos lá atrás”.
Ele continua:
“Vamos considerar os resultados pífios de um cara como o Dória, que foi eleito massivamente. Fácil vai, fácil vem. Quando o golpe é muito exagerado, o tombo tende a ser rápido também. Mesmo Moro, numa outra chave, Ciro, a tal da terceira via que não acontece. Cadê o pensamento de direita brasileiro? Vai ficar difícil vocês voltarem. Podia ter uma turma melhor”.
NEOLIBERALISMO, LINGUAGEM DIGITAL E DESEJOS
Na entrevista ao TUTAMÉIA, Dunker trata de “Lacan e a Psicanálise”, livro que, ele conta, surgiu da sua prática de discutir política e de participar dos debates públicos.
“O livro está atravessado por considerações que definem o nosso contemporâneo. A primeira é a consideração sobre o neoliberalismo. Seja o que a gente for pensar sobre a nossa forma de vida, isso está atravessado pela maneira como a gente trabalha, produz, pelas transformações no mundo do trabalho nos últimos 40, 50 anos. Não cem anos. É uma coisa datável e não é eterna”.
“A segunda consideração é que mudanças de linguagem mudam o sujeito, e a gente tem na linguagem digital uma mudança que tomou conta dos nossos laços sociais. Então a gente precisa reescrever psicologia de massas, análise do eu, teoria da identificação, uma série de coisas que se alteram quando a linguagem muda. Que se alteraram quando a linguagem escrita se tornou acessível para a maior parte da população”.
“E a terceira consideração diz respeito aos nossos modos de transmissão do desejo, às nossas configurações familiares. Como a gente passa adiante modelos de criação, como a gente transmite ideais pós 1968. É o pós-68, o neoliberalismo e o universo novo da linguagem digital. Isso tudo compõe uma redefinição importante do sujeito e da pulsão de morte”.
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