“Estamos numa tsunami do absurdo, surreal. Ela é tão poderosa, violenta e descomunal em termos de tamanho e forma que não para. Não dá ouvidos a nada, não reflete sobre nada. Essa tsunami ameaça engolir o país. Ela ameaça afogar a cultura e a civilização brasileira”. É o que afirma o cientista Miguel Nicolelis em entrevista ao TUTAMÉIA (acompanhe no vídeo acima).

Para ele, que vota em Fernando Haddad, a eventual vitória de Jair Bolsonaro e o caos interessam “a quem não quer o Brasil sendo um país protagonista”. O país, reforça, “participou [nos governos do PT] da criação de uma multipolaridade geopolítica que incomodou profundamente. Claramente o Brasil tinha que ser removido como protagonista internacional”.

O padrão, afirma, é o mesmo seguido na Líbia, na Ucrânia, na Síria, no Egito, na chamada Primavera Árabe. “Olha o que sobrou da Líbia, da Síria, casos muito semelhantes ao nosso. Essas guerras assimétricas têm impressões digitais. Podem ser ações de grupos que estão lutando pela dominação financeira do mundo”.

O cientista fala com indignação da violência perpetrada pelos seguidores de Bolsonaro, de assassinato, de agressões, de pichações, do caso da garota de Porto Alegre que teve uma suástica inscrita à navalha no corpo.

“Tem gente desenhando a suástica nas paredes do Brasil sem saber o que ela representa para a história da humanidade. Deve ter gente indo na moda.  Porque nunca ouviu falar da Segunda Guerra Mundial, do Hitler. Tem um limite para o absurdo, mas nós estamos desafiando esse limite.  A sensação de várias pessoas é a de as eleições no Brasil estão desafiando as leis do absurdo”, diz.

CIVILIZAÇÃO VERSUS BARBÁRIE

Apesar das pesquisas para o segundo turno, Nicolelis declara estar “esperançoso de que ainda haja pensamento crítico e racional no Brasil. No momento final, vamos escapar por um fio de cabelo da tragédia, do caos, da barbárie. Porque essa é uma decisão entre a civilização e a barbárie”. E segue:

“Minha esperança é que, no momento decisivo, haverá um número maior de brasileiros que quer manter o Brasil como nação soberana, democrática, civilizada, não misógina, não homofóbica, não racista. E chegue lá e vote, não pela opção do partido nem mesmo pela pessoa, mas que vote por uma opção de pais que nos mantenha na comunidade internacional e no mundo civilizado. Porque a outra opção é um pulo no abismo sem saber onde ele termina”.

AUTOFAGIA NACIONAL

Nicolelis é um dos mais importantes cientistas do mundo. Membro das Academias de Ciência brasileira, francesa e do Vaticano, doutor em Medicina pela USP, ele recebeu mais de 30 prêmios internacionais. Desde 1994, é professor da Duke University, nos EUA. Ficou mais conhecido do grande público quando, na abertura da Copa de 2014, Juliano Pinto, paraplégico havia dez anos, deu o chute de abertura dos jogos. Três metros atrás de Juliano estava Nicolelis, idealizador (com John Chapin) do paradigma cérebro-máquina que proporcionou a realização do inédito e revolucionário movimento.

Para ele, o Brasil caiu numa espiral autodestrutiva, uma autofagia nacional. É o projeto nacional de autofagia mais estuporante, mais inacreditável do século 21.

“Será que as pessoas não estão percebendo que nós vamos nos transformar na África do Sul (do apartheid) do século 21? Passei as últimas semanas dando aula na Europa. Está todo mundo aturdido. Cientistas, intelectuais, escritores, pensadores, economistas, as pessoas sentavam para jantar e me perguntavam: O que está acontecendo no Brasil? Vocês ficaram loucos?  Perderam o caminho? Como vocês vão eleger um indivíduo desses? Como é possível um país dar um tiro na cabeça, cometer um suicídio internacional?”.

BOTÃO DO MEDO

Na visão de Nicolelis, a proposta de Bolsonaro “é mais atrasada que o neoliberalismo norte-americano atual, que já é um terror. Tem tem caras de direita nos EUA que dizem que o que ele está propondo é algo que vai para trás 70, 80 anos”. Para ele, Bolsonaro “é pior do que Trump em certos sentidos –e eu não tenho simpatia por Trump”.

Por quê?

“Pior porque [Bolsonaro] está galvanizando um movimento totalmente acéfalo, um movimento puramente de ódio. É mais assustador porque penetra em segmentos da sociedade que você não imaginaria que ele seria aceito. Pessoas com alta formação educacional tendem a votar nele. É a sociedade do medo. Apelar para o medo é a válvula de escape para qualquer candidatura que não tem proposta. É apertar o botão do medo”.

PIOR DO QUE 1964

A pergunta essencial a ser respondida é quem está por trás de Bolsonaro, afirma o cientista. “Ele por si só é uma figura patética, ignorante, sem nenhuma formação. Ele foi expulso da escola de oficiais por razões assustadoras”. E segue:

“Não acredito que os militares brasileiros nacionalistas suportem esse cara. O que ele propõe é pior do que foi feito no golpe de 64. Porque é uma devastação total da soberania nacional. Eu não consigo acreditar que a alta oficialidade brasileira seja dominada por pessoas que não queiram manter o Brasil como uma nação soberana.  Tem setores das Forças Armadas que acreditam no Brasil, na democracia, na manutenção do Estado de direito e no desenvolvimento tecnológico científico e humanista do país”.

VIRUS INFORMATIVO

Médico pesquisador do cérebro, Nicolelis estudou o caso do massacre em Ruanda (800 mil mortos em 1994), quando, de repente, hutus e tutsi saíram se matando, com facadas, machetes. “Eram pessoas vizinhas, amigos que jogavam futebol juntos”, ressalta. Na sua análise, ao logo do tempo, os meios de comunicação (especialmente o rádio) foram criando um clima de ódio. Um pacote viral de informação foi sendo transmitido continuamente até que, com o estopim de um forte acontecimento, foi dada a deixa para a matança.

“Primeiro se cria um vírus informativo que apelas para os instintos mais primitivos, tribais do ser humano. Estão todos aqui [aponta para a cabeça] e nós os combatemos com nosso córtex grande, que nos cria um grau de racionalidade. Você desenvolve um grau civilizatório, tem o ensino, você não vai sair mantando gente que pensa diferente de você. A educação é importante. Ela muda a configuração física do cérebro humano”.

Assim, explica, se apreende os conceitos de democracia, de justiça, de civilidade, de convívio social. “Mas, lá em baixo, você ainda tem as rotinas primitivas. No momento que você cria meios de comunicação de massa na velocidade aldeia global, esses pacotes virais de informação, essas fake news contaminam. Porque apelam para os instintos mais primitivos que existem no ser humano. Se o ser humano não teve a capacidade de desenvolver o seu pensamento crítico –e falar que isso é mentira–, o cara acredita e aquilo casa com que está dentro dele. É o inimigo, o que vai comer criancinha, andar de Ferrari. É como um vírus que entra no seu organismo. Para você tirar é um deus nos acuda”.

DE VOLTA AO PALEOLÍTICO

Assim, diz, surge o fenômeno de manada.

“O que está acontecendo no Brasil é um caso que vai ser estudado do ponto de vista sociológico, neurocientífico. É a manipulação dos meios de comunicação, principalmente as redes sociais, o whatsapp, que você não tem acesso, não tem vacina. Isso está fazendo as pessoas acreditarem no seus próprios preconceitos, nos seus próprios atavismos ou arquétipos tribais. O efeito dessa hiperconectividade, em vez de criar a aldeia global do [Herbert Marshall] McLuhan (1911-1980), nos levou de volta ao paleolítico, à vida tribal. As pessoas se fecham em tribos de facebook e de whhtsapp, twitter e passam a acreditar nas abstrações mentais mais absurdas que são criadas dentro desse ambiente fechado e que não são permeáveis a nenhum tipo de debate”.

Para Nicolelis, “ninguém votou em plataforma, as pessoas votaram contra algo. Canalizaram nesse indivíduo, que ninguém convidaria para jantar, com que ninguém iria conversar no ponto de ônibus ou jogar bola. Ele não tem nada a oferecer”.

Na sua avaliação, “esse voto é como se fosse uma erupção. Como se houvesse um abcesso que ficou 50 anos crescendo, mas ninguém lancetou, ninguém quis olhar. Nessas eleições, o abcesso explodiu. Isso é um reflexo do processo de democratização do Brasil, que nunca olhou para trás e fechou o capítulo do golpe de 64. Não podemos deixar protagonistas dos crimes mais bárbaros simplesmente saírem aí e virarem heróis da extrema direita. Tem pensamentos aflorando aqui que são piores do que o que eu ouvia quando eu era criança nos anos 1970”.