Três eleições neste ano são definidoras para a América Latina: a na Venezuela, agora no dia 20 de maio, a no México, no mês que vem, e a no Brasil em outubro. “Elas podem consolidar essa onda de direita, ou significar algum anteparo a essa verdadeira onda neoliberal que está de volta à América Latina de uma maneira muito mais selvagem do que a dos anos 1990”.

A visão é de Gilberto Maringoni, professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC, em entrevista ao TUTAMÉIA. Na sua análise, nos anos 1990 a privatização foi feita em alguns setores, como a telefonia e partes do setor elétrico, mas manteve o cerne das áreas como estatal. Assim, a geração de energia elétrica e a Petrobras não foram atingidos.

“A privatização agora não tem nenhum argumento, é uma privatização de desmonte. No caso da Petrobras, é gravíssima, porque envolve a venda das refinarias, que é onde se investe tecnologia de verdade. A Petrobras pode terminar como uma extratora de óleo cru, que vai tirar petróleo do solo e vai vender sem passar pela fase de beneficiamento, que é o que gera divisas para o país. É uma privatização que não tem nenhum sentido estratégico. É um processo muito mais selvagem. É nessa selvageria que se dão as eleições. Por isso o embate na Venezuela é tão áspero. É uma direita tão selvagem quanto a brasileira”, declara.

DEPENDÊNCIA DO PETRÓLEO

Autor de “A Venezuela que se Inventa” (Fundação Perseu Abramo, 2004), Maringoni é um especialista no país vizinho. “A Venezuela é um país sem indústria; 97,5% de sua pauta de exportação é petróleo. A crise tem origem no preço do petróleo, que oscila muito”, observa.

Ele lembra que o clássico de Celso Furtado “Ensaios sobre a Venezuela, Subdesenvolvimento com Abundância de Divisas” continua atual para expressar o drama estrutural da economia daquele país.

Há outros elementos para análise. “Historicamente, a carga tributária que se paga na Venezuela alcança apenas 13% do PIB. No Brasil, é 34%, na França é 44%, na Alemanha é 47% do PIB –ou seja, quase metade de tudo o que o país produz durante o ano é arrecadado pelo Estado em forma de impostos. Então, 13% é nada. Ninguém paga imposto na Venezuela. São impostos indiretos, sobre o consumo. Isso não financia o Estado, a Venezuela depende historicamente do ingresso do petróleo para financiar o seu dia a dia”, afirma.

Para Maringoni, as eleições do próximo dia 20 colocam o país numa encruzilhada: “A opção lá é entre a Venezuela voltar a ser o que foi durante a maior parte do século vinte –uma plataforma de extração de petróleo para o mercado americano e o mercado europeu– ou se constituir como um país soberano, uma nação com direitos para sua população”.

AMEAÇA DOS ESTADOS UNIDOS

Nos últimos meses, cresceu a pressão norte-americana sobre a Venezuela. “A ameaça de Trump de intervenção militar na Venezuela é uma coisa inédita. Os EUA intervieram nos golpes do Brasil, no Chile, Argentina Uruguai, mas nunca mandaram tropas. Mandaram tropas para o Panamá, para a Guatemala, mas para a América do Sul, nunca. O que  Trump está falando é uma coisa inédita, é um escândalo”, diz o professor.

E acrescenta: “O argumento é que a Venezuela vive uma crise humanitária. Dizem que não há dinheiro para a comida. É engraçado, não tem dinheiro para a comida, mas a energia está funcionando, a água está funcionando, então qual é a crise humanitária? Quando se fala em crise humanitária, abre-se espaço para intervenção internacional via Nações Unidas. Quer se criar o argumento de que existe uma crise humanitária na Venezuela”, ressalta.

Maringoni não deixa de criticar o governo, mas observa: “A situação está muito difícil, a crise é profunda. Existem algumas situações, em alguns locais, de saques em supermercado. Mas não há nem de longe o que se assistiu nos anos 1980, na Venezuela, em termos de saques cotidianos, porque na época a crise era muito mais profunda, o preço do petróleo ficou em baixa ao longo de quase toda a década de 1980. Há problema. Não é uma crise que justifique uma intervenção”.

DITADURA OU DEMOCRACIA?

É correto chamar o presidente Nicolás Maduro de ditador? Maringoni responde:

“O processo político na Venezuela é imperfeito como em toda democracia. Ninguém nunca se pergunta por quê, nos Estados Unidos, em toda eleição só tem dois partidos, quando o país tem mais de cem agremiações políticas. Há problemas. Existe, eu acho, um uso da máquina pública, pelo governo e pela oposição, historicamente. Você analisa os estados governados pela oposição, o uso da máquina pública é desbragado”.

E continua: “Mas é um governo que, no período da alta do petróleo, conseguiu reduzir as disparidades sociais, criou legislação de apoio à população de baixa renda, eliminou o analfabetismo e teve um processo constante eleições. Pode-se colocar em dúvida o processo eleitoral? Sempre. Não existe processo eleitoral mais duvidoso do que a eleição do Bush no ano 2000, contra o Al Gore. Ninguém propôs uma intervenção nos Estados Unidos por causa disso”.

Mais: “Eu acho que tem problemas. A gestão do Maduro é criticável em várias áreas. Mas daí a dizer que é uma ditadura vai uma grande distância. Não chamar o Temer de ditador, não classificar o que aconteceu no Brasil como golpe … Hoje saiu pesquisa no “Valor” dando conta de que 48% da população considera que houve golpe no Brasil. Vai ter eleição. Você duvida do processo? Pode duvidar em qualquer lugar do mundo”.

ELEIÇÃO ACIRRADA

Na entrevista, Maringoni discorre sobre a história política recente da Venezuela. Lembra que a “oposição ao chavismo sempre foi muito dividida”. A tentativa frustrada de golpe em 2002 acabou por colocar Hugo Chávez como “paladino da ordem”. No seu discurso, “era o governo que garantia tranquilidade, uma situação de bem-estar social, e a oposição está tumultuando”.

“A oposição ficou na defensiva”, lembra o professor. “O setor mais extremado da oposição, do qual Leopoldo Lopez fez parte, se queima, colhe uma impopularidade muito grande”.

Na sequência, há um setor que se descola da oposição golpista e resolve entrar no jogo político, disputar com Chávez nos marcos institucionais. Outra parte da oposição se isola e abandona o jogo democrático.

Depois de sucessivas derrotas, o setor da oposição que participa das eleições começa a ganhar peso, porque a crise se aprofunda, aponta Maringoni. Na eleição do Maduro, em 2013, a expectativa do governo era vencer com dez por cento de vantagem; a vitória veio com um por cento. E imediatamente a oposição começa a alegar fraude.

“A oposição vai bem na eleição para governadores, e a crise coloca o governo na defensiva. Desde lá, a oposição toma a iniciativa, tem um candidato muito competitivo, que é o Henrique Capriles, que é um cara que não estava no golpe. Desse ponto de vista, democrático, seria um cara inatacável. Claro, é um cara de centro-direita. Apoiou o golpe, mas não estava na linha de frente. Tentam construir a candidatura do Capriles, que perde as eleições”.

A crise vai se aprofundando. E agora, quando parte da oposição defende o boicote às eleições?

“Vai ser uma eleição acirrada. O Maduro ganhando, a batalha vai ser para ter o reconhecimento internacional. Mas é uma situação desesperada. Qual é a alternativa, do ponto de vista democrático, dessa oposição? Ela não vai resolver a crise, vai aprofundar o fosso de desigualdades na Venezuela. Vão privatizar a saúde pública, a educação no que falta ser privatizada, deixando a empresa de petróleo funcionando como sempre funcionou antes do Chávez, sem ser um instrumento para o desenvolvimento interno, de acordo com os interesses das grandes companhias norte-americanas”.

Na entrevista, Maringoni detalha muitos aspectos do processo político venezuelano. E fala do Brasil: do desmonte promovido pelo golpe, da mídia, da resistência de Lula. Ele foi um dos entrevistadores do ex-presidente para o livro “Luiz Inácio Lula da Silva, a Verdade Vencerá, o Povo Sabe Por Que me Condenam” (Boitempo, 2018).

Liderança do Psol (foi candidato pelo partido ao governo de São Paulo nas eleições de 2014), ele diz que votará em Guilherme Boulos e defende enfaticamente a campanha por Lula Livre.