“É um momento muito grave, muito triste, e ele não passou. A tragédia da pandemia ainda não acabou. E ela corre o risco de se estender muito mais do que poderia ou deveria. Nós ainda não estamos fora desse negócio, e ainda tenho grande receio de nós possamos enfrentar, se não uma onda como a segunda, que foi algo assim enorme, mas uma nova subida de número de casos e internações agora em outubro e novembro, até o final do ano, por causa do domínio da variante delta –em certas regiões, inclusive na cidade de São Paulo, ela já está com noventa por cento.”
É o alerta que faz o neurocientista Miguel Nicolelis, um dos mais importantes do planeta –entre outros prêmios e galardões, ele acaba de receber o título de professor emérito da Universidade de Duke, na Carolina do Norte. Profundo observador do desenvolvimento da pandemia do coronavírus no Brasil, ele fala ao TUTAMÉIA dias depois de o Brasil ter ultrapassado a marca de seiscentas mil mortes por causa da covid.
“O que aconteceu no Brasil tem nome e tem culpa no cartório. Todo o manejo da pandemia no Brasil foi um absurdo, por parte do governo federal. E, depois da segunda onda, me desculpe, todo o mundo chutou o balde, não tem mais santo nessa história, nem no governo federal, nem nos governos estaduais. Todo mundo achou que estava bom para liberar”, dispara ele (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
MEDIDA IRRESPONSÁVEL
Nos últimos dias, por sinal, o ministro da Saúde comentou a possibilidade de deixar de ser recomendado/necessário o uso da máscara –medidas que governadores e prefeitos também vêm analisando. Para Nicolelis, é um despropósito:
“Na semana passada, Brasília estava com 78% de ocupação de UTIs, as UTIs pediátricas com cem por cento, porque a variante Delta do vírus tem atacado as crianças e os jovens. E estamos com jogos de futebol com público sem máscara –a gente olha pela televisão e fica horrorizado–, a gente está com aberturas totais, o prefeito do Rio de Janeiro dizendo que pode ter réveillon, que pode ter Carnaval.”
Ele segue: “Eu acredito que essa discussão, de que nós podemos nos livrar das máscaras é completamente irresponsável. Mostra uma falta de noção, falta de conhecimento do que está acontecendo no mundo”.
Nicolelis lembra o que acontece nos Estados Unidos nos últimos meses: “O CDC americano anunciou que podia se livrar das máscaras, naquela euforia típica dos norte-americanos, que têm o hábito de cantar vitória antes da hora. Naquele dia, eu estava dando entrevista para o um site dos EUA e disse: ‘É uma das decisões que o CDC vai lamentar para o resto de sua vida´. E não deu outra: com a remoção da obrigatoriedade do uso das máscaras, que já não era grande coisa nos Estados Unidos, as pessoas começaram a circular sem nenhuma proteção, e nós vimos os Estados Unidos atingirem quase trezentos mil novos casos por dia nessa nova onda, e cruzar novamente a marca de três mil mortes por dia. Os Estados Unidos estão tendo hoje mais de dois mil óbitos por dia, é o maior contribuinte em número de mortes, quase um terço do número de mortes por dia no mundo é hoje dos EUA”.
MORTES DE GRÁVIDAS
Ele adverte: “Tudo leva a crer que essa variante é mais transmissível, e ela atinge grupos que inicialmente não foram tão afetados. O jornal britânico “The Guardian” fala hoje que um de cada cinco casos mais graves, no Reino Unido, é de mulher grávida não vacinada. No Brasil, neste ano, já quase quadruplicou o número de grávidas que morreram de covid, em relação ao ano passado. Em 2020, nós perdemos 404 grávidas; neste ano já foram mais de mil e quatrocentas”.
E continua: “A pandemia é dinâmica. Quando há centenas de milhares de novos casos por dia, como nos Estados Unidos, ou dezenas de milhares de novos casos por dia, como o Brasil ainda tem, o vírus tem mais chances de mutar, tem mutações aos montes, o que pode criar novas variantes. Esses trinta mil casos por dia, as pessoas acham pouco, isso é uma explosão em termos de ajudar o vírus a ter mutações que podem levar a variantes mais graves. É preciso diminuir dramaticamente o número de pessoas infectadas”.
SEQUELAS: ESTERILIDADE E DIABETES
O cientista alerta para um outro problema, ainda pouco comentado: as manifestações crônicas da covid, consequência da presença e da ação do vírus no corpo.
“O que mais me preocupa neste momento é um estado britânico mostrando que 37% das pessoas que foram infectadas –incluindo as assintomáticas ou que tiveram casos leves da doença– tem covid crônica, tem manifestações crônicas da covid.”
Qual o significado disso? Ele explica:
“A pessoa tem a covid, a infecção primária. Pode ter um quadro clínico detectável ou não, mas o vírus permanece no organismo e, ao longo do tempo, começa atacar órgãos os mais diversos possíveis: sistema nervoso central, coração. Estamos falando, por exemplo, de uma epidemia de diabetes secundária à covid, porque o coronavírus, a longo prazo, pode atacar células do pâncreas que produzem insulina e destruir essas células, e aí as pessoas desenvolvem diabetes secundária. Estamos falando de infecções gastrointestinais, problemas imunológicos. Já existe até descrição de problemas de esterilidade secundária à infecção pelo coronavírus.”
CRISE CONTINUADA
Os efeitos crônicos vão atingir o sistema de saúde do mundo: “Trata-se de um número altíssimo, uma coisa que vai gerar, não só no Reino Unidos e nos Estados Unidos, mas também no Brasil, uma outra tsunami de demanda de recursos hospitalares, nós vamos ter milhões de casos no Brasil de doentes crônicos, se o estudo inglês for válido para nós”.
“Por isso que eu acho que é assustador ver o grau de irresponsabilidade que eu vejo em todas as camadas da sociedade brasileira lidando com isso. Gente na televisão narrando jogos de futebol dizendo: ‘Que maravilha, o público voltou!´, e as pessoas com máscara no queixo. Em teoria, o público tinha de apresentar prova da vacinação ou do teste negativo, ninguém pediu, as pessoas estavam entrando! Nós não estamos nos dando conta de que essa crise pode ser perpetuada por vários anos por causa da demanda de recursos de saúde, recursos hospitalares”.
ISOLAMENTO NECESSÁRIO
Por tudo isso e apesar dos anúncios otimistas de governantes –que Nicolelis considera irresponsáveis–, o cientista vem mantendo firmemente suas medidas de proteção pessoal e recomenda que todos se protejam:
“Eu continuo de quarentena, eu continuo mantendo o isolamento social o máximo que eu posso, faz quase dezenove meses que eu não consigo voltar para casa, nos Estados Unidos, eu continuo usando máscara quando eu tenho de fazer qualquer coisa, até pegar comida de entrega, eu uso máscara.”
“Já tomei as duas doses, mas só vou conseguir tomar a dose de reforço em fevereiro do ano que vem. Até lá, não saio daqui. E todo mundo da minha família com que eu tenho possibilidade de conversar está seguindo a mesma coisa. Eu não me considero seguro, ainda.”
“Durante dezoito meses, não tivemos nenhum caso no meu prédio. Duas semanas atrás, um de nossos moradores teve. Ele está bem agora, mas ficou na UTI. Para você ver o risco… O vírus está ao seu redor. A gente pode não estar vendo na mídia, só quando a gente atinge essas marcas catastróficas que você vê manchetes, mas não há análises mais profundas sendo relatadas continuamente na mídia.”
“Eu não declarei vitória, e eu não acho que nós vamos declarar vitória até o final do ano. E tenho dúvidas seriíssimas dessas histórias de liberar réveillon, marcar Carnaval. Eu acho de uma irresponsabilidade sem limite. Não vejo como justificar essas decisões.”
ANIQUILAÇÃO DA NAÇÃO
Os riscos que o Brasil vive vão muito além da mortandade provocada pela gestão de Bolsonaro na pandemia –ainda que ela seja uma tragédia de dimensões históricas.
“O grau das desigualdades, o grau de desmandos, o grau de todo o sofrimento e avilte que a população brasileira passou nessa pandemia é reconhecido no mundo todo como um crime contra a humanidade. O que foi feito contra o povo brasileiro, a favor do vírus nesta pandemia, é algo que supera até o que aconteceu nos Estados Unidos sob o governo do Trump. O caminho que nós estamos trilhando é um caminho temerário, em que a existência do Brasil enquanto nação soberana está em jogo.”
O que o governo Bolsonaro está executando, afirma Nicolelis, “é um projeto de aniquilação. É um projeto de aniquilação da soberania, dos instrumentos da soberania, que são saúde, educação, desenvolvimento científico e tecnológico, independência econômica, diversificação da economia. Nós estamos vendo numa destruição da indústria no Brasil. A ciência está sendo aniquilada. É um genocídio científico. Quando se remove mais de 90% do orçamento da instituição que fornece o maior número de bolsas científicas, para desenvolvimento da força de trabalho científica do país, você mata o negócio. Isso não vai ser revertido do dia para a noite, vai precisar décadas para ser revertido”.
ENCRUZILHADA HISTÓRICA
É o momento em que todos e cada um devem tomar posição, conclama o cientista:
“Esse é um momento de bifurcação histórica para o Brasil. A sociedade brasileira vai ter de decidir de vez se nós vamos nos transformar numa nação de verdade, ou se nós vamos abrir mão desse objetivo e simplesmente continuar como um aglomerado de gente num país gigantesco.”
“A sociedade brasileira tem de olhar no espelho, cada um de nós, e perguntar: Que diabo de país eu quero para meus netos? O que eu quero deixar para meus bisnetos? O que nós vamos fazer com esse país que nós temos, mas não possuímos? Fica claro que as instituições brasileiras falharam de uma maneira crassa nesse processo. Nós perdemos provavelmente muitos mais do que seiscentos mil brasileiros para a covid, podemos estar chegando às oitocentas mil vítimas, podemos chegar a um milhão no ano que vem se nós tivermos uma outra onda devastadora, e eu acho que, com essa última decisão de cortar 92% das verbas do CNPQ, ficou absolutamente claro de que o projeto é de extermínio do país. Não é só de extermínio da sociedade brasileira, é do país enquanto nação.”
Tal diagnóstico, porém, não deve levar ao desespero ou à paralisia, mas sim à luta, diz o cientista Miguel Nicolelis: “Apesar de tudo isso, ainda acho que há tempo para a gente agir. Mas precisa começar logo, porque já passou da hora”.
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