“Por subserviência aos Estados Unidos e à Otan, a mídia corporativa brasileira não está cobrindo a guerra. Ela se transformou numa espécie de release dos interesses dos Estados Unidos, dos interesses da Otan. Além de só um lado ter voz, só o lado “Ocidental”, há toda uma demonização da cultura russa, do atual governante da Rússia e, na verdade, uma demonização de todo o Oriente. Quando a mídia toma um lado ou divulga só um lado, ela se torna parte da guerra. Sai do âmbito do que seria o jornalismo, ou, pelo menos, a teoria do jornalismo, e vai para a propaganda: um lado só, a versão de um lado só, a visão de mundo de um lado só. Isso não é jornalismo, isso é propaganda.”
É a avaliação da doutora em comunicação Angela Carrato, professora na Universidade Federal de Minas gerais e co-autora do livro “Jornal Nacional, um projeto de poder — a narrativa que desconstruiu a democracia brasileira”. Falando ao TUTAMÉIA, ela analisa o papel da mídia na guerra da Ucrânia e demonstra haver semelhanças no tipo de cobertura do conflito e a atuação das rádios, televisões e imprensa nas eleições presidenciais no Brasil –fake news, silenciamento e enviesamento nas redes sociais são algumas das ramas (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
“Acho que essa eleição, infelizmente, vai ser um vale-tudo. Se a gente já tinha aqui uma crise econômica, fruto do golpe, da destruição da Petrobras, da destruição das empreiteiras, enfim, da ação da Lava Jato e do desgoverno do Temer e do Bolsonaro, se isso tudo já era problema, temos problemas extras. Há a pandemia, em que má gestão levou a um número de mortes muito maior do que o que poderia ter acontecido, foi terrível em todo o mundo, aqui está sendo mais terrível. E há a guerra. Mesmo que ela acabe daqui uma semana, duas semanas, um mês, dois meses, os resquícios vão ficar.”
Mais:
“Aqui no Brasil, há uma guerra que já vem se processando há mais tempo, que é essa guerra do que o Jessé Souza chama de elite do atraso contra o povo brasileiro. Uma guerra de uma minoria, em geral associada a interesses internacionais, que vai muito bem, obrigado, que está aí recebendo milhões de dividendos da Petrobras, e que não está nem aí para a grande maioria do povo brasileiro, que vive com um salário mínimo, dois ou às vezes até menos. É essa outra guerra que nós vamos ter aqui. É a guerra dos que têm e querem manter seus privilégios com os que não têm e precisam de alguma coisa.”
Na guerra eleitoral, como no conflito militar que se desenrola agora na Europa, a mídia tem lado, avalia a professora da UFMG:
“Temo que essa eleição repita muito do que eu considero de pior na eleição passada. Com relação à cobertura da mídia me parece que a gente está também caminhando para algo semelhante. Bolsonaro foi colocado na cena midiática sem que fosse mostrado quem ele era. E se sabia quem ele era. Bolsonaro estava no Congresso havia quase três décadas, as posições, o que ele fazia, tudo era bastante conhecido dos jornalistas. E nada disso veio a público.”
Agora, novamente, “tem na verdade duas candidaturas. A candidatura de Lula, consolidada, liderando, pela história dele, os dois governos que ele fez, pela excelente avaliação que ele teve nesses governos, e a candidatura do Bolsonaro, expressando aí essa visão de extrema direita, que está aí em torno dos vinte e cinco por cento”.
Nessa situação, como aconteceu em 2018, “de novo, a Globo tenta de tudo quanto é jeito criar uma terceira via, porque não se sente representada pelo Lula, pela pegada popular, e também não se sente representada pelo Bolsonaro, porque o Bolsonaro não é limpinho e cheiroso, eles possivelmente prefeririam um Aécio, uma coisa assim, mas está fora do páreo. Acontece que a tal da terceira via não vai para lugar nenhum. Moro foi sustentado por anos, no Jornal Nacional, como essa figura, o herói, o juiz, para ser o candidato. Sói que foi desmontado, deu errado. Porque ele era uma mentira.”
Não havendo terceira via, a mídia corporativa vai repetir a opção feita em 2018, afirma Carrato:
“No segundo turno de 2018, a opção era entre o candidato do Lula e o Bolsonaro, e a mídia acabou indo de Bolsonaro. Fingiu eu não era com ela, mas foi de Bolsonaro, achando que poderia negociar, poderia acertar, porque sempre fizeram assim. Agora a coisa está complicada, porque é Bolsonaro e é Lula. Acho que, mesmo nesse cenário, eles trabalham com a ideia de que, se for isso mesmo, o jeito é Bolsonaro.”
Na avaliação dela, há muitas evidências disso:
“Tenho visto que a cobertura está sendo aliviada para o Bolsonaro. A Globo nunca criticou o governo Bolsonaro como um todo. Ele criticou e critica o Bolsonaro em algumas pautas identitárias e também na gestão da pandemia, em que realmente ele foi um desastre. Agora na pauta econômica não há crítica para ele. Nada.”
De certa forma, um desvio que repete o que está acontecendo com a cobertura da Guerra na Ucrânia:
“Em geral, a gente espera que a mídia cubra os acontecimentos, envolvendo os diversos lados. O que acontece nessa guerra? Aqui no ocidente, estamos recebendo basicamente só as informações de um lado da guerra, o lado Estados Unidos/Otan/Europa. O pouco que chegava do outro lado, da Rússia, da China, quase não está chegando ou está sendo censurado. Isso é uma distorção, isso é forçar a barra. O papel da mídia não é potencializar o horror nem forjar o horror; o papel da mídia é cobrir, mostrando todos os lados. E é isso que não tem acontecido. E, se isso não está acontecendo na Europa, nos Estados Unidos, aqui no Brasil a coisa fica um pouco pior, para não dizer muito pior.”
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