“É um crime. Se o estado, se a administração pública tivesse agido de outra forma, essas mortes não estariam acontecendo. Se a administração pública tem essa capacidade de agir de uma maneira para que as mortes não aconteçam, se as mortes acontecerem é um assassinato premeditado. Não vejo como aliviar essa culpa da administração pública. Ela é inteiramente responsável pelas mortes que estão acontecendo.”
Essa é a conclusão do geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos, pesquisador sênior do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, falando com a autoridade de que já foi diretor de Planejamento e Gestão e diretor da Divisão de Geologia Aplicada do IPT.
Com ele concorda o engenheiro Ivan Maglio, doutor em saúde ambiental e especialista em planejamento urbano, que afirma:
“É uma situação que vai se agravar ainda mais, então temos de atuar no campo político. O campo técnico já estudou, já previu, fala, repete. É um quadro onde as orientações técnicas estão aí, mas politicamente se está enxugando gelo e patinando há muito tempo. Temos de mudar. Ou mudamos radicalmente ou essas mortes vão continuar acontecendo em grau vez maior.”
Maglio e Santos participaram de debate promovido pelo TUTAMÉIA para analisar a tragédia deflagrada no Estado de São Paulo pelas chuvas do último domingo (30 de janeiro) –clique no vídeo para ver o programa completo e se inscreva no TUTAMÉIA TV.
Até agora, há registro de 24 mortes –incluindo oito crianças e dois adolescentes. A Defesa Civil contabiliza 660 famílias desabrigadas e centenas de pessoas desalojadas em onze cidades (no destaque, na primeira página do site, reprodução de imagem apresentada na TV Record).
“É uma tragédia anunciada”, diz Maglio, atuou como pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados da USP – Centro de Síntese Cidades Globais -2019/2021, área adaptação climática e planejamento urbano. Ele continua:
“Desde a virada do ano, estamos vendo essas chuvas torrenciais que vêm vindo da Bahia, passando por Minas, chegando agora a São Paulo. Os prognósticos já estavam aí. Estudos climáticos mostram que vai haver um aumento da intensidade de chuvas e que essa intensidade vai ser o novo normal. Chuvas como essa aí, que em 72 horas chegaram a mais de 200 milímetros –o equivalente a um mês—vão ocorrer mais vezes. Já tivemos no ano passado, e houve mortes.”
E reforça: “Os municípios têm de se preparar para a crise climática. Porém a gente já tem um histórico de como é o nosso planejamento urbano, o planejamento urbano de uma cidade segregada, onde os ricos ficam em lugares seguros e os pobres ficam em lugares inadequados, inseguros, inundáveis, com risco de escorregamento.”
Autor de “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções” e de uma série de outros livros no campo da geologia, Álvaro dos Santos diz que se trata de uma questão política:
“Os nossos desastres, as nossas tragédias não são naturais. É claro, há interferência de questões naturais, como a questão do relevo, a questão das chuvas, mas elas são normalmente induzidas pela forma inadequada com que o homem lida com os terrenos são ocupados. Do ponto de vista técnico, não há nenhum aspecto nesses acidentes, sejam os deslizamentos, sejam as inundações, que não estejam devidamente estudados e equacionados pelo meio técnico, nas suas abordagens preventivas, corretivas e emergenciais. A responsabilidade pela continuidade e pelo aumento da letalidade desses eventos está justamente na decisão da administração pública brasileira de não aplicar as recomendações técnicas feitas pelo meio técnico-científico brasileiro.”
Ponto também destacado pelo planejador Maglio:
“Não há gestão de risco preventiva, ou há pouca. Os pontos de risco a gente já sabe, as quantidades de área a gente já sabe. Mas aí não tem decisão política de por recursos para reduzir essas áreas de risco, o que pode ser feito reassentando as pessoas, plantando no local. Normalmente pode chover no mês de janeiro ou fevereiro, 200 milímetros, diluída no mês inteiro. Quando isso ocorre em 72 horas, toda aquela quantidade provoca enxurradas enormes, agride o ambiente, as áreas de risco com muito mais intensidade, o que acelera o risco que já existe.”
Como aspecto de fundo de tudo isso, aponta Santos, que trabalha na área há mais de cinquenta anos, há o que ele chama de apartheid social:
“A cidade acaba reproduzindo, em seu desenho urbano, a estrutura social, os problemas sociais estruturais conhecidos. Existe um processo hoje de expulsão social da população de baixa renda para as zonas periféricas, onde não existe nenhuma infraestrutura pública. Ela é inexoravelmente empurrada para as zonas periféricas, buscando o metro quadrado mais barato. Ocupa encostas de alta declividade, margens de córregos, regiões suscetíveis a deslizamentos e a inundações.”
Ele continua: “Esse condicionante social, que é um verdadeiro apartheid social que está acontecendo na região metropolitana de São Paulo e nas regiões metropolitanas das grandes e médias cidades brasileiras, de expulsão da população pobre para situações sem a mínima infraestrutura para receber instalações habitacionais, é a causa principal hoje da instalação em áreas de risco.”
Maglio, por sua vez, cita estudos coordenados pela professora Luciana Travassos, da Universidade Federal do grande ABC, para lembrar que toda essa situação se acirrou ao longo da pandemia: “Ao contrário do que diz o mercado imobiliário, aumentaram o número de favelas no Brasil inteiro, aumentou a população que vive em favelas. Em São Paulo também: as maiores favelas cresceram porque as pessoas não têm para onde ir. As pessoas estão sendo expulsas por gentrificação –valorização dos lugares mais qualificados—e tendo que ir para as periferias, para os lugares onde pode acontecer mais as áreas de risco”.
O estado precisa intervir, ressalta Santos: “Ou o governo atende a essa tremenda demanda por habitações para a população de baixa renda, com programas corajosos, resolutivos, ou essas áreas vão se multiplicar –e já estão se multiplicando! A população das regiões centrais de São Paulo está se reduzindo, enquanto nas periferias da cidade há crescimento de até dez por cento da população ao ano, morando em situações cada vez piores de meio físico geológico, cada vez topografias mais acidentadas, já por si geradoras de área de risco”.
E resume: “Ou há solução política para o atendimento da demanda habitacional da população de baixa renda ou muito pouco conseguiremos fazer para interromper esse processo maluco de instalação de área de risco.”
O problema é que a gestão pública não sós parece se afastar da busca de soluções, mas caminha em sentido contrário, como diz Ivan Maglio:
“Às vezes, dizem que está assim por falta de planejamento. Não, não está assim por falta de planejamento. Está assim por causa de um tipo de planejamento, que segrega territorialmente, segrega socialmente, segrega espacialmente, joga os pobres nas periferias, nos lugares de maior perigo, mais suscetíveis a tragédias. Em tudo isso, tem essa decisão, que é uma decisão de fazer um planejamento dirigido para a cidade do capital, para a cidade do mercado imobiliário, enquanto a outra cidade vai se segurando conforme ela mesma pode. Isso é um absurdo que vem se repetindo.”
O que não significa que a continuidade da tragédia seja inevitável. Maglio e Santos falam sobre o caminho eleitoral para a mudança de governantes:
“Temos uma situação calamitosa, trágica para a população de baixa renda, que só vai ser resolvida na medida da melhoria da qualidade dos políticos que assumem as nossas administrações públicas. Ou mudamos a qualidade dos nossos administradores públicos ou muito pouco nós vamos poder fazer em defesa de nossa população mais pobre”, diz o geólogo.
E o planejador urbano reforça:
“A esperança que a gente tem, além de não votar mais nessa gente, é de que há vários movimentos que estão lutando por uma situação diferente. Há todo um movimento que acho que pode ajudar a transformar esse planejamento. É um quadro muito difícil de mudar, mas há muito movimento de resistência, que demonstra que pode alterar alguma coisa, conquistando áreas verdes, conquistando moradia, brigando contra essa política que está aí.”
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