OS IMPRECISOS CONTORNOS DA NOVA ESTRATÉGIA ESTADUNIDENSE
E O CAMINHO PARA O FIM DA ORDEM LIBERAL IMPOSTA PELOS EUA
TEXTO DE MAURICIO METRI
Professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa e do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor do livro “História e Diplomacia Monetária”, finalista do prêmio Jabuti Acadêmico de 2024
Em outubro de 2024, Donald Trump concedeu entrevista ao apresentador Tucker Carlson, em que deixou claro o mais importante desafio de seu governo na área internacional: afastar a Rússia da China, por identificar nesta a principal ameaça aos Estados Unidos no século XXI. Isso significa um redesenho do núcleo central das grandes potências, formado apenas por esses três países.
Talvez, por isso, tenha escolhido a estranha figura do apresentador de televisão Pete Hegseth como Secretário de Defesa. Autor do livro American Crusade: Our Fight to Stay Free, publicado em 2020, o novo secretário sugere, em tons histriônicos, uma cruzada judaico-cristã em defesa do Ocidente contra a China sobretudo. Para o Departamento de Estado, nada muito diferente. Trump optou por Marco Rubio, um neoconservador, que também identifica a China como o mais importante desafio geopolítico dos Estados Unidos neste século. Assim como seu chefe em Washington, o secretário Rubio tem falado abertamente sobre a necessidade de uma aproximação com Moscou no intuito de isolar e enfraquecer a posição de Pequim no mundo.
Percebe-se, de imediato, uma inflexão importante na tradição da política externa estadunidense no que se refere à Rússia. Desde 1947, com a inauguração da Doutrina Truman, os Estados Unidos se alinharam mais diretamente às diretrizes do pensamento geopolítico britânico, cujo eixo estruturante se encontra na definição da Rússia como a principal ameaça aos seus interesses globais e à sua segurança nacional. Algo vivo até hoje nos palácios britânicos. Tal visão nascera em 1814, quando da vitória russa contra Bonaparte, e mantivera-se presente nos espaços de poder de Londres ao longo de todo século XIX, como, por exemplo, no Grande Jogo da Ásia. Sua formalização ganhara contornos mais precisos em 1904, quando da publicação do famoso artigo “The Geographical Pivot of History” do geógrafo britânico Halford Mackinder, principal referência para o pensamento geopolítico anglo-saxão posterior.
Se, por um lado, a política (de contenção da URSS) inaugurada pelo presidente Harry Truman em 1947, demarcando o início da Guerra Fria, estruturou-se com base no desafio russo, ora bolchevique, por outro lado, implicou a expansão, para as fímbrias da Eurásia, da tradição intervencionista e violenta dos Estados Unidos, praticada a ferro e fogo no hemisfério ocidental, desde o início do século XIX. Nesse sentido, para dar conta dos desafios europeus do pós-guerra, Washington criou a OTAN, em 1949, cujo princípio básico, sintetizado pelo seu primeiro secretário, o general britânico Lionel Ismay, foi o de manter os Estados Unidos dentro (da Europa), a Rússia fora e a Alemanha agachada.
Curioso que essa visão antirrussa seguiu viva mesmo depois da vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria. No documento National Security Strategy (NSS) de 1991, publicado pela Casa Branca, a Rússia continuou sendo percebida como a principal ameaça à segurança dos Estados Unidos, mesmo na condição de derrotada. Não por outra razão, o documento indicou a necessidade de expansão da OTAN, o que, de fato, ocorreu ao longo das últimas décadas, quando a OTAN dobrou de tamanho, ao incorporar 16 novos países, avançando em direção às fronteiras russas. Ainda dentro dessa agenda de enquadramento russo pós-Guerra Fria, foi-lhe imposta uma violenta paz punitiva por meio do Programa de Terapia de Choque, formulado por economistas ocidentais, dentre eles Jeffrey Sachs.
DESAFIOS PARA A ESTRATÉGIA TRUMPISTA
Portanto, é contra essa antiga diretriz antirrussa da geopolítica anglo-saxã que a atual Administração Trump se rebela, a princípio. Se isso, de fato, prevalecer, o que não é certo, as principais iniciativas da nova administração Trump envolverão necessariamente três desafios entrelaçados: por óbvio, acentuar a confrontação contra a China em todos os tabuleiros do globo; por derivada, enfraquecer a parceria estratégica sino-russa; e, como consequência, negociar uma nova inserção da Rússia no que diz respeito à segurança internacional (o que passa pelo esvaziamento da OTAN) e à economia global (o que implica a suspensão do amplo espectro de sanções econômicas criadas desde o início da Guerra da Ucrânia).
Quanto ao primeiro desafio, a questão, evidentemente, não é simples. A China já é a mais importante economia do planeta, com a maior participação no PIB mundial (em termos de poder de paridade de compra); o maior polo industrial e comercial do globo; domina aproximadamente 90% das tecnologias críticas; possui cerca de 18% da população mundial e tem o terceiro maior território, atrás apenas de Rússia e Canadá. Ademais, a China detém arsenal atômico e forças armadas desenvolvidas, além de conduzir o mais ambicioso projeto de integração geoeconômica do mundo, a Iniciativa Belt and Road, e de participar de importantes arranjos internacionais, baseados na cooperação, como, por exemplo, a Organização de Cooperação de Xangai, voltada à segurança e defesa da Ásia, e o BRICS, agrupamento com o propósito de construir uma nova governança financeira internacional.
Até o momento, embora a nova administração Trump não tenha revelado de modo claro as diretrizes de sua concepção geoestratégica, ela tem dado pistas nesse sentido. Estão tomando forma algumas iniciativas para bloquear a China, através da expansão, fortalecimento e controle mais direto de territórios econômicos, zonas de dominação, áreas de influência e protetorados. Algo evidente, por exemplo, em sua política hemisférica, dirigida a uma presença maior e um controle mais direto em algumas de suas regiões, como, por exemplo, o Golfo do México e a porção norte do continente americano. Se naquele, pretende-se um bloqueio ao acesso da China ao Canal do Panamá, coração do chamado “Grande Caribe”, conceito basilar da geopolítica estadunidense; nesta, fica a impressão de que a Casa Branca ambiciona negociar uma partilha do Ártico apenas com o Kremlin. Para tanto, vislumbra o enquadramento do Canadá e a projeção sobre a Groenlândia. Em termos mais globais, a Casa Branca tem apontado para o estabelecimento de “cordões sanitários”, por meio de pressões bilaterais, que impeçam ou comprometam as parcerias estratégicas de outros países (suscetíveis às pressões de Washington) com a China, a fim de, no limite, bloquear fundamentalmente tanto o alcance geográfico da Iniciativa Belt and Road, quanto as ações do BRICS que ameacem direta ou indiretamente a posição do dólar no sistema internacional.
Em relação ao desafio de enfraquecer a parceira sino-russa, a ideia aparente é reproduzir, com sinal trocado, a diplomacia triangular da administração Nixon (1969-74), quando Washington explorou as excessivamente latentes rivalidades entre Pequim e Moscou. O desgaste da relação entre os dois países ao longo de toda a década de 1960 chegara às vias de fato, em 1969, quando soldados chineses e soviéticos trocaram tiros em três regiões de fronteira. Não por outra razão, a China, em documento oficial, redesenhara naquele ano a principal ameaça à sua segurança nacional, dos EUA para a URSS, dando o pontapé inicial à famosa diplomacia triangular.
A presente ideia de inversão do sinal dessa triangulação, falada abertamente em Washington, é apoiar Moscou para isolar Pequim. No entanto, o grande problema na atual conjuntura é que, diferente das relações sino-soviéticas dos anos de 1960, marcadas pelo aguçamento das rivalidades e pela redução abrupta dos espaços de cooperação, as relações entre o Kremlin e Zhongnanhai nos últimos anos nunca foram tão produtivas, profundas e amplas, estruturadas a partir de uma mesma ameaça em comum: justamente a pulsão de violência e barbárie derivada do projeto imperial militar global dos EUA depois de sua vitória na Guerra Fria. Contra a ordem unilateral global estadunidense, Rússia e China convergiram e se aliaram, sobretudo a partir de março de 1999, depois da primeira rodada de expansão da OTAN e do bombardeio de Belgrado por forças da OTAN. Nesse sentido, é muito pouco provável que os Estados Unidos consigam no contexto atual modificar tal triangulação.
Por fim, no que se refere ao desafio de reinserir a Rússia no sistema comandado pelo Atlântico Norte, a questão também não é simples. Desde 2000, o Kremlin assumiu uma clara posição revisionista, explicitada, por exemplo, no famoso discurso de Putin na Conferência de Munique de 2007. Ao longo dos anos, centralizou o poder contra as oligarquias locais, reconstruiu a economia nacional, em especial o complexo industrial militar russo, logrando, em 2018, uma revolução na arte da guerra, quando assumiu a ponta tecnológica em armamento sensível, com o desenvolvimento dos hipersônicos. Somado a isso, obteve significativas vitórias, como, por exemplo, na Georgia em 2008, na Síria em 2017 e, atualmente, na Ucrânia. Portanto, muito diferente do contexto do imediato pós-Guerra Fria, o desafio atual é o de reinserir um país vitorioso no campo de batalha e na fronteira tecnológica em armamento sensível.
Diante desse quadro, a Casa Branca parece querer realizar a derrota da OTAN na Guerra da Ucrânia, jogando a responsabilidade do fracasso no colo dos democratas. Busca, de tal modo, o “menos pior” acordo de paz possível, o que envolveria o congelamento das fronteiras na forma como se encontram atualmente, garantindo o acesso dos EUA às riquezas minerais do território ucraniano não tomados pelo exército russo. Há, nesse caso, a compreensão de que o prolongamento da guerra tende a produzir um desenho territorial ainda mais favorável à Rússia. Além disso, fala-se também em esvaziamento da OTAN e suspensão das sanções econômicas contra a Rússia.
BOMBA DE PROPORÇÕES TECTÔNICAS
No entanto, o grande dilema é que a possibilidade de reinserir a Rússia nesses termos configura-se uma bomba de proporções tectônicas para a Europa, sobretudo para Inglaterra, França e Alemanha. Paira sobre a Europa o mesmo pesadelo que atormentou Winston Churchill nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial, quando a derrota alemã já era certa, e os vitoriosos disputavam as feições do mundo no pós-guerra. Para desespero da autoridade britânica, Franklin Roosevelt (então presidente dos EUA) não identificava na Rússia de Stálin (então URSS) uma ameaça aos seus interesses prioritários. Tinha mais antagonismos com a Inglaterra de Churchill e com outros países da Europa, em razão dos extensos impérios coloniais que estes ainda controlavam, bloqueando, há tempos, a projeção dos EUA para outras regiões do planeta. Como dito em outra oportunidade, para desespero de ingleses e franceses, o desenho da Europa para o pós-guerra apontava para: uma Alemanha desarmada e ocupada (sobretudo, pelos soviéticos); uma França sem capacidade de iniciativa estratégica; uma Inglaterra esgotada; uma retirada das tropas dos Estados Unidos do Continente; uma Rússia em proporções históricas jamais vistas; uma Rússia sem qualquer outra autoridade central capaz de contrapor-lhe em toda Eurásia; e a inexistência de uma ameaça em comum, como existira em Viena (1815) e, também, em Lodi (1454), que diluísse, em algum grau, as diferenças entre vitoriosos e amarrasse, de algum modo, suas iniciativas.
Nos dias de hoje, percebe-se algo semelhante ao pesadelo de Churchill espraiando-se nos salões e palácios do poder da Europa: os EUA ameaçam esvaziar a OTAN, enfraquecendo a Europa; esta, tutelada há décadas pelos EUA via OTAN, possui baixa capacidade de iniciativa no campo militar; a Rússia venceu os armamentos da OTAN no campo de batalha e desfruta de significativa vantagem estratégica; e inexiste uma ameaça em comum entre russos, americanos, chineses e europeus que dilua suas rivalidades, receios e medos.
Portanto, considerando o que foi apontado e se mantendo as diretrizes da nova administração Trump, o resultado mais provável será a Europa retomar com as próprias pernas o caminho da militarização, do nacionalismo e, no limite, da guerra. E, para tanto, terá que ajustar suas economias nacionais, não mais aos princípios e compromissos com a desregulamentação e a liberalização comercial e, sobretudo, financeira; com regras fiscais rígidas de controle de gastos; com políticas monetárias austeras e restritivas; com a ideia de estado mínimo; e, no limite, com a ode ao “deus Mercado” e às suas “forças naturais”. Com o tempo, deve acabar prevalecendo o modus operandi da velha economia de guerra inventada pelos mercantilistas europeus, ressuscitada de tempos em tempos, mais precisamente de guerras em guerras, onde o princípio orientador se desloca para: a expansão do gasto militar, via endividamento público; o protecionismo; os controles de capitais; a centralização do mercado de câmbio; o fortalecimento do capital nacional na indústria, nas finanças e na agricultura; e tantas outras políticas voltadas à redução das vulnerabilidades relativas à competição interestatal no campo das armas, da energia, dos alimentos, da tecnologia, da informação, das finanças, da saúde, etc.
Não é difícil perceber que, prevalecendo tais tendências, será o fim da ordem liberal imposta pelos EUA à Europa Ocidental e ao Japão nos anos de 1980 e globalizada para o resto do mundo na década seguinte. Ao término, todos serão novamente mercantilistas por força da geopolítica.