Laerte, cartunista e gênia, contou ao TUTAMÉIA que está envolvida na produção de um projeto muito especial, que chama de “A Longa” e é uma “narrativa dos afetos”. Trata-se, diz, de “uma mega-história, uma espécie de apanhado daquilo pelo que eu e meus contemporâneos passamos no território do sexo e da política, desde os anos 70, desde que eu virei adulta”.

Ela segue: “Acabou a adolescência, virei adulta, começo a fazer sexo e começo a fazer política, são duas coisas que brotam mais ou menos parelhas. O Brasil e o mundo passaram, nesses quesitos, por experiências muito ricas, fortes, e eu fiquei com vontade de fazer uma espécie de balanço disso”.

As razões são claras, conta a artista de 67 anos: “Para mim, sexo e política são dois eixos para me entender no mundo”.

Prossegue: “Sexo e política são eixos muito básicos. Como a gente vê a outra pessoa enquanto corpo, enquanto vivência de desejo, e como a gente vê os outros, as outras pessoas, os nossos contemporâneos e conterrâneos, as pessoas que estão sofrendo, as pessoas que estão gozando. Entender o que é a presença da ação política na vida de uma pessoa. Eu não vejo a vida como uma coisa que tem uma missão ou um motivo. Vida é o que a gente vai fazendo”.

Laerte Coutinho, paulista, cartunista, chargista, roteirista, estrela de cinema, militante transgênero, ativista política, fez de sua vida um posto de observação dos costumes e da política que nos cercam. Observação que transforma em desenhos simples e agudos, profundos, que escancaram fenômenos que, não poucas vezes, os poderes constituídos tentam esconder das massas.

Dois dias antes da entrevista que deu ao TUTAMÉIA, por exemplo, publicou na “Folha de S. Paulo” charge em que combina análise da reação das elites à eleição de Andrés Manoel López Obrador à presidência México com a avaliação que faz da atuação do juiz Sérgio Moro no processo contra o presidente Lula.

“Nessa charge do Obrador, eu estava impressionada com essa vitória do Obrador e animada, como muita gente ficou, e também era o dia do jogo do Brasil contra o México [na Copa do Mundo]. Eu achei que era interessante lembrar que um país não é só seleção de futebol. Então o fato de o México ter sido eliminado pelo Brasil não invalida o fato de que terem feito uma eleição muito importante. Eles podem ter dado um passo seríssimo no sentido de derrotar essa estratégia americana de plastificar a América Latina inteira.

“Me veio a possibilidade de introduzir também o modo como eu vejo a Justiça brasileira sendo manobrada por esses interesses todos na figura de gente como o Sérgio Moro. Então fiz uma conexão entre o Sérgio Moro e o Obrador, assim, nessa base do Chapolin Colorado…”

Dito isso, passamos a registrar a seguir algumas da observações, reflexões e histórias trazidas por Laerte ao longo de nossa conversa, que pode ser acompanhada na íntegra no vídeo apresentado no alto desta página.

JUSTIÇA MANIPULADA

É inadmissível que o Lula esteja preso, num processo completamente viciado, desde o início, é impossível que o Moro esteja solto, e ali, fazendo seu carnavalzinho em Mônaco, fazendo suas embaixadas nos Estados Unidos. Ele se comportou como um obsessivo até conseguir o que queria.  Para mim, é claro que ele foi pautado para isso e cumpriu sua missão.

Eu acho que ele foi pautado pelos Estados Unidos, faz todo o sentido. O modo como ele se refere aos acordos, o modo como ele passa informação para abastecer os processos americanos contra a Petrobras, o modo como está se construindo todo um núcleo de promotores, delegados, agentes públicos brasileiros também com esse viés, então eu acho que há um esforço organizado, sim, para usar o poder público, a Justiça e os ministérios públicos como uma força política direcionada.

Isso faz eco com coisas que estão acontecendo no Equador, na Venezuela, no Peru, na Nicarágua, está acontecendo isso em vários lugares. Acho que é um movimento organizado.

A reação é difícil porque a corrupção é um tema que suscita uma indignação justíssima, consegue uma adesão quase total, e eu acho que prejudica a clareza, porque você passa a ter comportamentos fanáticos. E aí o florescimento das conduções coercitivas começa a minar as regras democráticas mesmo, as regras do direito.

A própria democracia fica abalada.

DERROTAR O GOLPE NAS ELEIÇÕES

Estamos todos e todas, os democratas, empenhados em derrotar o golpe. Haverá eleições. Houve um momento em que essas eleições periclitaram, acho que hoje não periclitam mais, a não ser que haja uma intervenção violenta.

A ideia de que não vai haver eleições já está meio controlada, mas periclitou.

Estamos vivendo essas possibilidades em relação às eleições: a candidatura do Lula, o Lula como preso político, uma disputa acirrada nas áreas de informação e da opinião.

Você é otimista ou pessimista?

Não tenho no meu cardápio ser otimista ou pessimista. Eu tento entender e ver o que eu posso fazer.

Tem um elemento didático na realidade que a gente está vivendo que a gente está aprendendo como é que se movimenta esse poder dos Estados Unidos, das multinacionais, esse poder desse sistema no sentido de combater, destruir ou neutralizar as democracias e a vontade do povo.

HUMOR PÓS-DITADURA  

O perfil do cartunista e do chargista mudou [depois do final da ditadura militar no Brasil].

Depois de 74, começou a distensão -Geisel e Golbery promoveram uma mudança no modo como a ditadura conduzia o processo. Abriram para partidos variados, sem soltar as ferramentas de arbítrio e de violência, mas, mesmo mantendo essas ferramentas, abriu-se para partidos, abriu-se para um fim relativo da censura, muitas coisas deram uma afrouxada.

Isso foi suficiente para romper essa frente unitária, única, unívoca das oposições. Para começar, porque tinha muitos partidos.

Muita gente falava que o PT estava rachando a frente, dividindo, o PDT também, tava todo mundo rachando… E entre os cartunistas também: parou de ter uma coisa que era o inimigo único, parou de ter o bem e o mal. E muitas outras tendências começaram a se desenhar nessa época. Muitos cartunistas deixaram de fazer cartum, em outros a natureza do trabalho deles passou a ser diferente também, mais cautelosa.

Por coincidência também foi uma época em que começou a crescer uma linguagem de quadrinhos. As pessoas começaram a dizer, ah, agora não é mais política, agora é costumes.

Eu não faço uma distinção tão clara assim: acho que, quando você está falando de costumes você está também, de alguma forma, lidando com questões políticas. Chiclete com Banana, Piratas do Tietê, tudo isso tinha um conteúdo político também.

PRODUÇÃO DE DIREITA

Tem. No território de charge, cartum, também tem. Em princípio, acho isso saudável. Acho bom que esse tipo de posição esteja se tornando clara e, portanto, acessível ao debate. E a ter resposta também.

Há um debate, mas, assim como em outros terrenos da cultura, não é um debate muito organizado, com muita nitidez.

Muitas vezes, as coisas se confundem e passam rápido para o território da briga de tapa. É comum você ver isso nessas acusações todas de Facebook, Twitter:: “Fascista, filho da puta, esquerdopata!!!”

Substitui-se a argumentação por esse clima de feira.

Acho que há o que aprimorar aí em termos de maturidade de debate.

Eu também faço parte dessa confusão, para mim também é uma coisa difícil debater, conduzir o debate de forma racional, equilibrada… Eu também me altero.

Acho que não há nenhum ambiente controlado pela direita a ponto de estabelecer censura. Há tentativas. Pessoal invade a exposição, mas acho que ainda existe resposta suficiente para isso.

É possível ainda se contrapor a isso. Essa direita ainda não conquistou o poder.

CULPA DO FEMINISMO

O humor é uma linguagem agressiva e é, muitas vezes, desrespeitoso. E acho que é preciso respeitar essa vocação de iconoclastia, que o humor tem de ter.  Mas, entre isso e cometer um crime, insuflar linchamentos, praticar racismo, vai uma boa distância.

Em relação a travesti, por exemplo, a presença da travesti e da pessoa transgênero no humor, era sempre de ridicularizar. Sempre foi visto como uma coisa ridícula, um homem se apresentar de forma feminina, se vestir de mulher. Então nos cartuns, nos quadros de humor, nos filmes, no teatro, homem trans ou homem que se travestia, que era transgênero, era sempre ridículo.

Ao contrário, a mulher que cruzava essa fronteira de gênero, ela entrava no terreno do drama. Uma mulher que se faz passar por homem está se escondendo do perigo, está querendo procurar uma proteção, está vivendo uma situação dramática.

Esse modo como os roteiros tratavam a situação transgênero, eu acho que está mudando, e é importante que mude.

Acho que foi tudo culpa do feminismo. Trouxe para a população LGBT muita riqueza de sabedoria, de clareza, de bandeiras, de tudo. Vice-versa também: acho que movimento LGBT também informou o feminismo sobre várias questões, uma delas o casamento. Mas eu acho que o movimento LGBT muito mais aprendeu e se fortaleceu com o feminismo.

Se você defende o casamento igualitário como um direito que as pessoas têm, você também está destruindo o casamento patriarcal, está esboroando a posição do macho cabeça de casal, aquela coisa toda que tinha. No combate à opressão de gênero, foram se introduzindo no feminismo questões como combate à opressão de classe, questão de classe, questão de raça, feminismo, negro, feminismo isso.

Nós estamos falando das novas ideias sobre gênero, não apenas homem e mulher, mas como a pessoa pode se colocar dentro do quadro social de gênero. Ela pode negar o sexo que lhe foi atribuído ao nascer, ela pode aceita-lo, tem um monte de coisas que podem ser feitas…

E existe uma forma de entender gênero que é o essencialismo: se você tem xoxota, você é mulher; se você tem pinto, é homem, e não há o que discutir em relação a isso. Esse ponto de vista, que é tradicionalista, ele também está presente em uma parte do feminismo, que portanto, não aceita as travestis, as transexuais, as pessoas transgênero como parte da luta feminista.

LUTAS IDENTITÁRIAS X LUTA DE CLASSES

Tá tudo misturado. Não pode deixar de existir. Voltando ao feminismo, houve um momento que foi apontado que o feminismo norte-americano era formado por donas de casa brancas de classe média. E cadê a classe operária?

Acrescentaram-se questões no feminismo. E acho que tudo isso vem enriquecendo o feminismo. O feminismo não é um partido, é uma questão que se apresenta para toda a atividade política em todas as sociedades.

Muitas vezes, ao ampliar o espaço de expressão na sociedade, trazendo gente que estava excluída, você não está só resolvendo problemas, você está acrescentando momentos de conflito. Você aumenta os momentos de conflito, de choque, e também a reação.

O movimento LGBT, ao lutar por expressão, por liberdade, por direitos, de certa forma, excita a posição de pessoas que estavam dando essa questão como resolvida [pensando] “essa gente conhece o seu lugar, mulher tá no tanque, preto tá na senzala, viado tá no gueto”. E de repente, não estão mais. Então o cara sai [gritando] Bolsonaro, mito, mito!

Charge publicada por Laerte quando completou 67 anos

MILITÂNCIA

Eu fui do Partido Comunista Brasileiro até meados dos anos 1980. Aí saí por questões pessoais, estava achando que eu precisava cuidar da minha vida, de assuntos particulares, e também me desentendo com determinados modos de atuar da militância, não estava me reconhecendo mais ali.

Eu nunca larguei essa rapadura. Eu sempre gostei do assunto, o assunto sempre me interessou. Eu acho que tive fases.

Houve fases na minha vida em que eu fui bem reacinha, assim. Eu fui quase um yuppie, defendia umas coisas meio neoliberal… São fases que a gente vai passando e vai modificando. Em relação ao que eu faço hoje, o modo como eu milito ou vou para a ação, hoje, a diferença é que há uma motivação muito pessoal. A minha vivência dentro da transgeneridade me motiva também a me conectar com pessoas que estão vivendo coisas parecidas. E de certa forma isso se combinou com a minha experiência política também. Pensar também em termos de classes sociais, populações que são excluídas, e eu acho que eu estou reconstruindo essa minha atuação hoje.

Eu nunca me limitei só a desenhar. Alguma perninha para fora eu sempre botei. Mesmo porque o meu tipo de trabalho induz a isso, faz pensar e estimula a agir de mais maneiras.

COMO TUDO COMEÇOU

Eu gosto de desenhar, mas não fico desenhando o tempo todo. Em geral, eu desenho para publicar.

Comecei lá pelos nove anos, não sei. É o momento em que aquele desenho que toda a criança faz vira um negócio diferente, qualitativamente diferente, muda. Passa a ser uma expressão favorita.

Houve um momento, que eu acho que foi ali pelos nove, dez anos, em que a expressão gráfica passa a ser uma expressão pessoal sua, uma expressão preferencial em relação a , sei lá, pular, cantar, falar. Sem excluir nada, você passa a entender que aquilo é uma coisa que te expressa muito bem.

Por conta disso, você passa também a prestar mais atenção em desenhos, no que as pessoas fazem, no que é possível fazer. Eu fui me abastecendo com isso, fui gostando de caricaturas, de desenho de humor, de desenho animado, quadrinhos…

Decisivo para mim foi o período de 66 a 68, meus 15 a 17 anos, onde eu fiz desenho e pintura na Faap, era um curso livre que tinha lá, e fiz teatro também…

Você vê, teatro… Eu não sou das artes cênicas, mas para mim foi fundamental. De que jeito? Eu não sei. Misteriosos jeitos: construção de roteiro, elaboração do humor, muitas coisas que vão entrando. Nem sempre ver quadrinhos te faz fazer quadrinhos; às vezes é isso, é teatro.