Apesar do genocídio, Israel não conseguiu nenhum de seus objetivos na Palestina. E hoje o povo de Gaza está nas ruas festejando e fazendo com as mãos o “V” de Vitória. Palavras do jornalista palestino Ramazy Baroud, editor do “Palestine Chronicle”.
Ele lembra o comentário de um general israelense que, no início da guerra, disse que os palestinos poderiam se considerar vitoriosos se, ao final da guerra houvesse nas ruas de Gaza pelo menos uma criança fazendo com as mãos o “V” de vitória. “Preciksamos garantir que isso não aconteça”, disse o militar numa entrevista a um canal de televisão.
“Eles tentaram impedir isso com extremo empenho e dedicação”, ironiza o jornalista, continuando: “Mataram 16 mil crianças, deixaram feridos um número muito maior, e ainda há milhares entre os escombros. Eles fizeram o máximo possível para impedir que aquele momento acontecesse. E hoje todo o povo de Gaza está nas ruas de Gaza fazendo o sinal da vitória!”.
Baroud participou, em 19 de janeiro de 2025, dia do início do cessar fogo em Gaza, de mesa redonda online ancorada pelo coletivo International Manifesto Group e retransmitida ao vivo pelo TUTAMÉIA no início da tarde de domingo.
Veja acima a fala completa do editor palestino e CLIQUE AQUI para acompanhar a íntegra do seminário (aproveite e se inscreva no canal TUTAMÉIA TV).
“Os palestinos resistiram, persistiram e venceram”, diz o jornalista. “Os palestinos de Gaza sofriam de fome antes da guerra começar. Estavam desarmados e isolados antes mesmo de a guerra começar e antes do dia 7 de outubro. Gaza é um dos lugares mais pobres na Terra, um dos lugares mais isolados, um dos lugares de mais alta concentração populacional e tudo o mais. O povo palestino luta não apenas contra Israel, mas contra todo o conglomerado ocidental, o poderio militar e de espionagem. E, apesar de tudo isso, a Israel não conseguiu alcançar nenhum dos seus objetivos. Não destruiu a resistência, não conseguiu realizar a limpeza étnica empurrando os palestinos para o deserto de Sinai, não conseguiu o desmantelamento de qualquer coisa, não conseguiu impor controle total e permanente sobre Gaza.”
Leia a seguir a transcrição da fala de Baroud no seminário sobre as perspectivas do governo Trump, evento organizado e realizado por Palestine Chronicle, Friends of Socialist China, Critical Theory Workshop, International Action Center e International Manifesto Group.
MUITO OBSTÁCULOS FORAM VENCIDOS, MUITOS PROBLEMAS FORAM RESOLVIDOS, E OS PALESTINOS SE UNIRAM COM ESSE NOVO ESPÍRITO DE VITÓRIA QUE NÃO TEM PRECEDENTES, É UMA CONQUISTA INÉDITA NA SUA HISTÓRIA
Não sei como descrever este momento, além de extremamente emocionante, mas também extremamente revelador, em termos da natureza da luta que está em frente a nós. Tentei articular na minha mente como entendemos este momento como palestinos, especialmente como pessoas da Gaza. E acho que a melhor forma de colocar isso é ter em mente que o genocídio não foi provocado por nossas ações, e que teria sido feito independentemente do tipo da ação dos palestinos.
E foi uma decisão já preconcebida pelo governo Netanyahu e pela administração do Biden. Mais importante, na verdade, pela administração do Biden, porque o genocídio não teria sido sustentado, facilitado, justificado ou defendido se não fosse pelo governo dos EUA. Considerando tudo isso, e que nós, palestinos, não tínhamos controle sobre como os americanos conduzem suas políticas estrangeiras, como Israel se conduz, [o cessar fogo] é a melhor conclusão possível.
E não quero ser mal entendido aqui. Não estou dizendo que a morte de, potencialmente, centenas de milhares, de acordo com o jornal médico da Lancet, estamos olhando aqui para cerca de 6% da população da Gaza, potencialmente até 10%, se não ainda mais, éalgo positivo. Isso não é um bom resultado.
Mas o fato de que não tínhamos controle sobre aquele momento, o fato de que os palestinos persistiram, resistiram e criaram um novo paradigma de resistência que deveria ser estudado, que deveria ser estudado por todos e aplicado de maneira diferente para diferentes ambientes. Nós descobrimos, graças a Gaza, que há temos espaço, nós temos margens para manejar como pessoas oprimidas, em qualquer lugar do mundo, principalmente no sul global, mas mesmo dentro das lutas por igualdade e direitos e liberação de diversas formas no norte global. Nós temos margem para lutar. E prova disso, de que temos margem para lutar, para lutar e ganhar, como Gaza, na verdade, ganhou, uma prova clara disso é que Gaza venceu apesar de ter estado sempre sob restrito controle, sob hermético cerco israelense.
Eu acho que isso é muito importante para as pessoas se lembrar, porque muitas pessoas, incluindo amigos e companheiros de Palestina, podem não compreender completamente as dinâmicas que precederam o dia 7 de outubro de 2020. Gaza está sob uma ocupação israelense desde 1967. A Gaza está sob uma guerra constante e brutal promovida por Israel desde 2008. Gaza está sob cerco fechado desde 2006-2007. A população de Gaza não tinha liberdade, não tinha direitos, nada. Os palestinos de Gaza sofriam de fome antes da guerra começar. Estavam desarmados e isolados antes de a guerra começar e antes do dia 7 de outubro. Então, elas não começaram com uma boa vantagem. Elas começaram como um dos lugares mais pobres na Terra, um dos lugares mais isolados, um dos lugares de mais alta concentração populacional e tudo o mais.
Então, elas começaram muito atrás, lutando não apenas contra Israel, e, novamente, isso é importante, mas contra todo o conglomerado ocidental. Eu sei, eu sei, que alguns países ocidentais tentaram pular do navio em um ponto. Muitos deles continuaram, eu quero dizer, apoiando a Israel e o sionismo até o fim, mesmo depois de a comunidade internacional, a ICC, a ICJ ter designado Israel como uma entidade potencial que estava provocando genocídio e emitido ordens de prisão para os líderes israelenses e tudo isso.
Ainda assim, eles persistiram até o fim. O Canadá é um deles, claro, os Estados Unidos, a Inglaterra, entre outros. Mas, com isso em mente, quase no primeiro ou segundo dia do genocídio israelense na Gaza, você tinha cinco unidades de inteligência (espionagem) mundial operando de dentro do pequeno território chamado Gaza, ajudando a Israel a coletar informações e conduzir sua guerra, a guerra genocida contra os palestinos.
Eu acho que eram os Estados Unidos, a Alemanha, a Itália, a Inglaterra, e eu acho que o Canadá é um deles. Não tenho certeza disso.
Gaza está lutando contra todos os maiores poderes maiores do Ocidente, com todas os seus equipamentos militares, em toda a sua inteligência. Houve ainda muitas informações dando conta de que havia americanos estavam no território. Embora o governo americano o negasse, mas nós temos um jornalismo investigativo sério mostrando que os americanos, na verdade, estavam presentes no território, incluindo a participação no massacre de Musayrat, em que mataram 271 palestinos, deixaram 800 feridos e destruíram um bairro inteiro e, para que vocês saibam, é o meu bairro, é onde eu morava.
Todo mundo lá foi morto ou ferido para salvar os quatro israelenses, e os americanos estavam envolvidos. E, apesar de tudo isso, Israel não conseguiu alcançar nenhum dos seus objetivos. Não destruiu a resistência, não conseguiu realizar a limpeza étnica empurrado os palestinos para o deserto de Sinai, não conseguiu o desmantelamento de qualquer coisa, não conseguiu impor controle total e permanente sobre Gaza.
Nada. Nada foi alcançado. Agora eles estão tentando manipular as palavras, dizendo que vão manter zonas-tampão, mas eles podem dizer o que quiserem, o fato é que eles não alcançaram absolutamente nada.
No início da guerra, jornalistas do Canal 14, entrevistando um ex-general israelense, perguntaram a ele como definir o que seria vitória e derrota. E ele disse que a vitória, para os palestinos, seria haver em Gaza, ao final da guerra, pelo menos uma criança nas ruas fazendo o “V” da vitória com os dedos. “Nós precisamos garantir que isso não aconteça”, disse ele.
E eles realmente tentaram isso com extremo empenho. Mataram 16 mil crianças, deixaram feridos um número muito maior, e ainda há milhares entre os escombros. Eles fizeram o máximo possível para impedir que aquele momento acontecesse. E hoje todo o povo de Gaza está nas ruas de Gaza fazendo o sinal da vitória!
Então até mesmo de acordo com aquela definição psicológica da guerra, os palestinos venceram.
Moche Wiglin, um ex-integrante do partido Likud, um aliado próximo Netanyahu que passou a não mais apoiar Netanyahu, disse que o que o preocupava mais era o fator de medo, o fator de medo, ele disse, o que é interessante, ele disse que não é mais a população de Gaza ou os palestinos que não tem medo dos israelenses, o fato é que os muçulmanos já não têm medo. Isso, para ele, foi a verdadeira crise. Israel precisava ter esse fator de medo.
Não é possível dizer hoje que os palestinos, agora mesmo, apesar de tudo, estão vivendo com medo. Então, há tantos obstáculos que foram quebrados, tantos problemas que foram resolvidos, e os palestinos se uniram com esse novo espírito de vitória que não tem precedentes. É inédito do ponto de visto histórico.
Estou ajudando minha filha a finalizar o seu doutorado em História Palestina e o mandato britânico, um dos livros que estou ajudando a traduzir de árabe para inglês é um livro de um historiador chamado Akram Izaytar, e ele fala sobre a luta e a resistência, a resistência armada, mas a resistência popular, as batalhas na Palestina, no início dos anos 1920, até o fim dos anos 1930. E enquanto estou passando por todo esse texto, estou procurando por um momento, apesar da história orgulhosa da resistência palestina e da resistência popular, apesar de tudo isso, eu não consegui encontrar, desde aquele momento até hoje, até esse momento em particular, há algumas horas, um momento na nossa história em que podemos realmente afirmar uma vitória real, uma vitória militar real e a vitória das pessoas sobre Israel.
O impacto psicológico disso é grave para Israel. E o impacto psicológico disso para os palestinos vai durar por gerações e vai ser fundamental em mudar a relação entre a ocupação israelense e a política israelense de apartheid israelita e as pessoas palestinas, não só em Gaza, mas em todos os lugares. Este é o momento que estamos falando.
Este é como a história foi feita. E, novamente, voltando à questão das margens, se Gaza fez isso sem recursos, virtualmente sem recursos, e durante um estado de miséria e fome, quem é que pode dizer que pessoas oprimidas, em situações com muito mais privilégios, e eu não estou tentando diminuir a luta de qualquer nação, eu estou baseado nos EUA agora, e eu conheço esse tipo de luta, e eu conheço as desvantagens socioeconômicos de muitos grupos oprimidos e de muitas minorias e assim por diante. Eu viajei por muitas partes do mundo, da América do Sul para a China, e eu conheço esse tipo de luta que existe em outros lugares do mundo, mas considerando que a dificuldade que as pessoas palestinas enfrentam, que é algo que é realmente difícil de descrever em palavras, eu acho que outros grupos estão em uma situação com muito mais privilégio, com melhores condições para sustentar uma luta a longo prazo com objetivos muito específicos e, ultimamente, ganhar. E precisamos tomar vantagem disso.
Sim, precisamos falar sobre o genocídio dos palestinos, Israel tem que ser responsabilizado, a lei internacional tem de ser aplicada, precisamos de uma era em que mudemos a relação entre a aplicação da lei internacional e o resto do mundo, especialmente no sul global. Sim, precisamos disso, mas não podemos desconsiderar esse momento do povo palestino. Não podemos roubar o momento de vitória e glória deles, não apenas pelo bem dos palestinos, mas pelo bem de todos nós, porque o que aconteceu na Gaza hoje significa esperança.
Quando um pequeno grupo de pessoas isolados ganha contra o todo o conglomerado militar ocidental, qualquer coisa é possível.
Sobre o cessar fogo, ouvi hoje alguns comentários da imprensa e, mesmo entre os analistas árabes e na própria Al Jazeera, parece que ainda estão presos à ideia de que o cessar fogo é o resultado de tudo o que aconteceu ou deixou de acontecer em Tel Aviv e Washington, como se Gaza não tivesse jogado nenhum papel nisso, o que é simplesmente errado.
Se os palestinos não resistissem em Gaza, essa coisa inteira teria sido resolvida há muito tempo, os veículos militares israelenses estariam circulando a bel-prazer por Gaza, construindo acampamentos, resorts para os soldados, e Jared Kushner estaria em algum lugar no norte da Gaza construindo resorts de luxo, pois ele já disse que o norte de Gaza é bom para esses investimentos imobiliários. Então, isso tem tudo a ver com a resistência palestina, então não vamos, por favor, negar o papel deles quando mais eles precisam desse apoio.
Em relação à posição de Trump sobre o cessar fogo, historicamente, os presidentes americanos não gostam de herdar as guerras de seus antecessores. Por temos a guerra do George W. Bush, a guerra do outro Bush, a guerra de Nixon, a guerra de Kennedy, a guerra do Obama, e assim por diante. Então, naturalmente, Trump não queria herdar uma guerra, ainda mais uma guerra como essa, que já se revelou uma causa perdida: já custou aos americanos dezenas de bilhões de dólares, não alcançou nenhum dos seus objetivos estratégicos ou geopolíticos. E ainda significou um desvio do foco da política norte-americana, ou do império americano, que está mudando seu foco para o mar do Sul da China e a região do Pacífico e tudo isso. Então, para ele isso não é uma grande prioridade.
Que fique claro: Trump é um homem de negócios sem coração, que só se interessa pelo lucro que seu dinheiro pode gerar. E o governo Biden deu a Israel dezenas de bilhões de dólares para que fizesse o serviço na Palestina. O trabalho em questão, claro, envolvia o massacre e extermínio do povo palestino. Mas não conseguiram realizar o trabalho, e Trump teria sido estúpido se quisesse continuar com isso.
Mas isso não o torna um bom homem ou um líder adequado por qualquer definição, o que faz é simplesmente baseado é só baseado em avaliação, em cálculo de vantagens e desvantagens, vendo que essa é uma guerra que não deve ser continuada, epor isso ele mudou de posição sobre a guerra.
Trump investe em o que é conhecido como pressão máxima, todos sabemos esse termo, mas é um termo de negócio, é sobre sanções, alimentação das pessoas, derrubando suas estruturas econômicas, ele vai fazer isso no Irã, vai tentar fazer isso na China, apesar de que ele vai falhar miseravelmente, porque sabemos que a China é capaz de lidar e absorver qualquer pressão econômica vindo dos americanos, e é a economia americana que é vulnerável, não a economia chinesa, e assim por diante. Então, isso é o que vamos ver de Trump, mais sanções, mais pressão em países inimigos, países do Médio Oeste e além, ao contrário de perseguir uma guerra que não vai em qualquer lugar.
A SEGUIR, PARTICIPAÇÃO DO JORNALISTA RESPONDENDO A PERGUNTAS FEITAS DRANTE A MESA-REDONDA.
As oportunidades. Muito rapidamente sobre as oportunidades. Eu estava muito feliz em ver Gabriel falando antes, porque foi ele que recomendou o livro O Marxismo Ocidental, de Domenico Losurdo.
Ele falava sobre como as realizações dos marxistas do LKeste foram percebidas pelos marxistas ocidentais. Todas as conquistas do Vietnã, toda a resistência, as vitórias em diversas partes da África, e da Ásia, e da América do Sul, foram perdidas, completamente negadas, ou analisadas como se fossem uma coisa negativa, foi o que marcistas e progressistas ocidentais fizeram ao longo dos anos. E eu digo que agora se apresenta uma nova oportunidade para eles.
O que aconteceu na Gaza, no Palestino, no Líbano, no Iêmen, é uma nova oportunidade para mostrar que nós podemos realmente ser vitoriosos se entendemos o significado, o significado histórico deste momento e crescemos com ele. E ainda que muitos países tenham se levantando e aproveitado esse momento, especialmente na África e na América do Sul, marxistas de outros países, que deveriam ter tomado as oportunidades ou usado essa oportunidade para construir uma nova ordem global, perderam essa oportunidade, talvez porque não tiveram fé nos palestinos ou no Oriente Médio como uma base para uma nova mudança global. Mas eu sinto que a oportunidade ainda está lá. Nós realmente precisamos compreendê-la completamente e construir nela para o futuro.