PENSAR COM LIBERDADE E CORAGEM:
DISCURSO EM HOMENAGEM
AO PROFESSOR EMÉRITO JOSÉ LUIS FIORI
(Pronunciamento de Mauricio Metri, professor no Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ,
em sessão solene do Conselho Universitário da UFRJ para outorga de título de
professor emérito ao prof. José Luis da Costa Fiori)
Bom dia. Gostaria de cumprimentar primeiramente: o Magnífico Sr. Reitor em exercício da Universidade Federal do Rio de Janeiro, prof. Carlos Frederico Rocha; as Exmas. Sras./Srs. membros do Conselho Universitário; o Exmo. Sr. Decano do CCS, prof. Luiz Eurico Nasciutti; as professoras e professores aqui presentes; as servidoras e os servidores técnico-administrativos; estudantes; ex-alunas e ex-alunos; familiares do homenageado, em especial, a querida amiga e profa. Maria Claudia Vater Fiori; amigas e amigos do homenageado; demais presentes; aqueles que nos assistem pelo canal da UFRJ no youtube; e por último, meus cumprimentos especiais ao homenageado, meu caro amigo, professor e mestre, José Luis da Costa Fiori, a quem quero agradecer, desde já, a honra pela oportunidade de fazer esse breve depoimento em sua homenagem (veja no vídeo acima a íntegra da fala de agradecimento de Fiori e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
Sras. e Srs., devo começar dizendo que não é uma tarefa fácil revisitar trajetória intelectual tão rica e diversa para moldá-la, de algum modo, em poucos minutos. Não são raras, tampouco triviais, as contribuições acadêmicas de nosso homenageado. Para vocês terem uma ideia, do ponto de vista quantitativo, José Luis publicou 19 livros próprios ou por ele organizados, escreveu 63 capítulos de livro, 149 artigos em periódicos e 396 artigos em revistas e jornais. Isso sem falar que alguns desses trabalhos: abriram novas agendas de pesquisa; revelaram perguntas inéditas; ressignificaram consensos; sugeriram respostas impensadas a antigas questões; revisitaram temas por ângulos não convencionais; e, não menos importante, propuseram outros diálogos e métodos.
José Luis da Costa Fiori nasceu no Rio Grande do Sul, no ano de 1945. Aos 19 anos, em razão do golpe militar de 1964, foi para o exílio no Chile. Lá estudou sociologia, economia e filosofia na Faculdade de Sociologia da Universidade do Chile.
De um conjunto diverso e abundante de experiências acadêmicas e pessoais em Santiago, uma das que mais lhe marcou foi seu convívio e amizade com o educador e filósofo Paulo Freire, quem o ensinou, em suas palavras, “a pensar com liberdade, sem medo das próprias ideias.” Eis algo que, de fato, talhou seu espírito e sua trajetória.
Em seu retorno ao Brasil, em meados dos anos setenta, trabalhou em duas frentes como professor: tanto no Departamento de Ciência Política da USP, onde passou pouco tempo; quanto no Instituto de Medicina Social da UERJ, onde ficou por muitos e muitos anos. Neste, além de atuar na formação de inúmeros sanitaristas, colaborou para a concepção intelectual do que posteriormente veio a ser o Sistema Único de Saúde do Brasil, o SUS, junto com a professora Nina Pereira, os professores Hésio Cordeiro, José Noronha, Reinaldo Guimarães, dentre outros.
Foi no início dos anos oitenta que José Luis veio para nossa querida universidade, oportunidade em que participou de uma pesquisa em parceria com o professor Carlos Lessa, ex-reitor, ex-decano, e ex-diretor do IE, que nos deixou recentemente por conta da pandemia.
Não foram poucas às vezes que José Luis comentou que se definia como um ágrafo até o início da década de 1990, quando se lançou na atividade que lhe conferiu grande notoriedade: a de analista da conjuntura nacional e internacional. Fez dos artigos de jornais e revistas uma trincheira da luta política por um país independente, democrático, mais justo e menos desigual.
Sua estreia com repercussão nacional ocorreu em razão do Plano Collor. Mal este havia sido lançado, momento em que o cidadão comum ainda absorvia a pancada do confisco da poupança, José Luis já denunciava os significados mais profundos daquele plano heterodoxo. Nos artigos “A Esquerda diante Napoleão” (8/4/1990), “Cem dias de Solidão” (8/7/1990), “Collor diante do Futuro” (30/9/1990), “O Triste Fim do Jacobinismo Liberal” (19/5/1991) e “A Sonolência da Razão” (8/12/1991 publicados no “Caderno de Ideias” do Jornal do Brasil, advertia sobre seu propósito principal: o de abrir o país às políticas do Consenso de Washington. Pela originalidade, argúcia e elegância de sua argumentação, José Luis tornou-se uma referência no debate político e econômico.
Sua atuação nas colunas de opinião dos jornais ganhou capítulo especial quando estabeleceu um controvérsia pública com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Seu artigo “Os Moedeiros Falsos” , publicado no Caderno Mais da Folha de São Paulo, apenas alguns dias depois do lançamento do Plano Real, foi outro belo exercício de crítica. Como antes, expôs as bases neoliberais, os significados ocultos do plano e as consequências das políticas e reformas em execução, ligadas a uma reinserção dependente e associada do país à nova ordem mundial. A força e a precisão de seus argumentos levaram o então ministro e candidato à presidência da república, Fernando Henrique Cardoso, a uma resposta no mesmo jornal, chamada “Reforma e Imaginação”. Esta foi seguida por uma tréplica demolidora de José Luis, o artigo “As palavras e as Coisas” ]
Ainda nos anos noventa, José Luis teve papel decisivo na organização da famosa e clássica coleção dos Livros Vermelhos da Editora Vozes, que começou com “Poder e Dinheiro” de 1997, ao qual foi seguido por “Estados e Moedas” de 1999; “Polarização e Crescimento” de 2001; e, por fim, o livro “O Poder Americano” de 2004. Um conjunto editorial que reuniu um grupo importante de pesquisadores da UFRJ e da Unicamp. Na orelha de um dos livros, a querida professora Maria da Conceição Tavares registrou a centralidade de José Luis nesse processo. Em suas palavras, “Além de seus ensaios, Fiori tem tido o mérito de tentar “reunir o rebanho” para retomar de forma criativa o caminho do pensamento crítico. (…) Não é tarefa fácil, mas feita com determinação vai conseguindo juntar os da velha guarda, Carlos Lessa e eu mesma, e todos os que se seguiram, os da Unicamp e os da UFRJ que escaparam do furacão que devastou o espírito crítico, reorganizado a duras penas nas últimas duas décadas.”
Eis uma parceria sobre a qual gostaria de tecer breves palavras. Conceição e Fiori construíram, ao longo de muitos anos, uma bonita relação de amizade, assentada numa profunda admiração e respeito mútuos. Trabalhei com eles em algumas oportunidades. Recordo-me de uma disciplina ministrada por ambos em 2003 na graduação e na prós-graduação do Instituto de Economia da UFRJ, em que me chamaram para ajudar como tutor, posição essa que me permitiu um privilegiado ângulo de observação. Embora partissem de uma reflexão teórico-histórica muito bem estruturada e didaticamente apresentada, ficava claro o quão difícil era pensar o “tempo presente” sem brigar com os fatos, ou seja: decifrar aquilo que por mais que olhemos diretamente, insiste em se esconder de nós. Nesse exercício, um instigava o outro a refletir abertamente, compartilhando impressões e ideias.
Do que pude acompanhar posteriormente, já como professor nas disciplinas que compartilhei com José Luis, este aperfeiçoou esse espírito de uma educação coletiva e crítica, baseada no livre pensar, como, por exemplo, nos seminários temáticos no âmbito do programa de pós-graduação em Economia Política Internacional aqui da UFRJ.
Sobre o premiado livro “Poder e Dinheiro” de 1997, organizado por Conceição e Fiori, este marcou profundamente minha geração. Afugentou qualquer complexo de vira-lata que pudesse nos assombrar. Foi, de fato, libertário e emancipador. Sob os telhados deste Palácio Universitário havia uma reflexão original e própria, cujos temas de interesse não se restringiam às nossas fronteiras nacionais e às de nossa América Latina. Abarcavam estas e o mundo. O livro propunha uma visão singular sobre o fenômeno da globalização. Em meio às visões marxistas que interpretavam a globalização como um processo relacionado ao surgimento de um novo regime de acumulação financeirizado, de um lado, e à visão do mainstream econômico, na qual a globalização era entendida como um fenômeno ligado ao desenvolvimento dos mercados e à inovação tecnológica, de outro lado, o livro “Poder e Dinheiro” sugeriu algo inédito e inusitado. Naqueles tempos de suposto fim das guerras, interpretava a globalização como uma dinâmica relacionada às disputas geopolíticas maiores, definindo-a como uma das faces do processo de reafirmação da hegemonia dos EUA e de sua vitória na Guerra Fria.
Particularmente, em seu artigo “Globalização, Hegemonia e Império”, José Luis já apontava para algo que, na época, pouco se falava, ou seja: ainda sob a névoa do globalismo clintoniano, os EUA já procuravam superar o projeto de retomada de sua hegemonia e buscavam construir uma ordem unilateral, imperial e global centrada em Washington. Tese que ficou evidente alguns anos depois, em 2001, com a ascensão dos falcões republicanos da administração Bush (filho). Não sei se já contei ao José Luis, mas alguns colegas, por essas e outras, o chamam, até hoje, de bruxo.
No segundo livro da Coleção, “Estados e Moedas” de 1999, José Luis sugeriu, por exemplo, uma releitura ampliada da famosa tese do duplo movimento de Polanyi, incorporando a ela outras determinações, as de natureza geopolítica e geo-econômica. Nesse exercício, não só apontou um ângulo cego na interpretação de Polanyi quanto as razões da 1º Guerra Mundial, como também identificou novas contradições e limites inerentes a qualquer ordem econômica liberal, inclusive na que nós, latino-americanos, vivíamos naquele então. A impressão é a de que José Luis já percebia a virada anti-neoliberal que estava prestes a se deflagrar no continente no início deste século.
Do meu ponto de vista, sua produção mais disruptiva, ocorreu logo depois. Está em seu artigo “Formação, Expansão e Limites do Poder Global” do Livro “O Poder Americano” de 2004. Ali, nosso homenageado inaugurou uma perspectiva teórica própria, cujo propósito é entender as leis de movimento do sistema internacional desde suas origens no Medievo. Começou pela crítica à ideia basilar que perpassava os principais autores que tratavam do tema, ou seja: a centralidade de um hegemon para o funcionamento do sistema internacional. Assim, a partir do que chamou de “Paradoxo do Hiperpoder”, José Luis inverteu o argumento ao identificar no próprio hegemon uma pulsão desordenadora e destrutiva. Para fundamentar sua tese, fez um recuo histórico de grande fôlego, argumentando que a força dinâmica e hierarquizadora do sistema está nas disputas entre as grandes potências. E, nessa longa história, ao contrário do senso comum, concluiu que o que estabilizou e ordenou o sistema foi a própria pressão competitiva da guerra.
Procurou avançar em sua argumentação teórica em seu livro “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” de 2007. Naquela oportunidade, ousou ao inverter, por exemplo, a proposição de William Petty sobre a origem do excedente, um dos conceitos basilares da Ciência Econômica, situando-o no âmbito da guerra e da tributação.
Sua pesquisa teórica deu outro passo com o livro “História, Estratégia e Desenvolvimento” de 2014. Neste, de novo rompeu consensos. Em todos os países por ele estudados, inclusive o Brasil, o desenvolvimento econômico, em suas palavras, “obedeceu a estratégias e seguiu caminhos que foram desenhados em resposta a grandes desafios sistêmicos de natureza geopolítica.”
Foi só a partir de então que, do meu ponto de vista, José Luis consolidou algo por que vinha se dedicando há muitos e muitos anos. Diria que desde 1975 em seu curso na USP. Nosso homenageado logrou amarrar uma sofistica forma de ver e pensar os acontecimentos da conjuntura, uma estratégia de análise que procura combinar a um só tempo teoria-história-conjuntura. Isso porque, por de trás de suas analises do tempo presente, existe uma perspectiva teórica própria, a que se convencionou chamar de “poder global”, a qual combina uma leitura histórica também própria acerca das leis de movimento de longa duração do sistema internacional, com base na ideia de “explosões sistêmicas”. Associado a isso, por vezes, utiliza-se de “arquétipos” e “representações coletivas”, presentes em diferentes tempos e lugares, como lentes de observação e análise de problemas atuais. Essa prática reflexiva vem lhe permitindo reinterpretar e ressignificar os acontecimentos de maneira tão original, sendo que sua expressão maior, em termos de sofisticação, ocorreu em seu livro “A Síndrome de Babel e a Disputa do Poder Global” de 2020.
Nos últimos tempos, do ponto de vista intelectual, José Luis não mudou muito. Segue na mesma toada: seu espírito inquieto se mantém em movimento; sua mente permanece incansável, dentro de uma lógica similar àquilo que denominou de “poder global”, com sua curiosidade e interesses sempre em expansão e em transformação. Semelhanças entre criador e criatura. Não por outra razão, renovou sua agenda de reflexão. Inaugurou uma ampla pesquisa sobre os temas da guerra, da paz e da ética internacional, com a participação de diversos pesquisadores de diferentes instituições de ensino, cujo resultado foi a publicação de outros dois livros por ele organizados: “Sobre a Guerra” de 2018; e “Sobre a Paz” de 2021. Nestes, para refletir sobre dilemas contemporâneos, propôs a retomada de antigas questões filosóficas e históricas, como, por exemplo, em relação ao conceito de “guerra justa” e à ideia de “violência da paz”.
Cabe sublinhar, por fim, uma outra realização não menos importante, ligada também à sua trajetória na UFRJ. José Luis logrou algo não muito comum: a institucionalização de uma agenda de pesquisa com fôlego, de referência e com inúmeros frutos. Tal feito se deu por meio da criação do programa de pós-graduação em Economia Política Internacional[5], cujo projeto pedagógico descende tanto do esforço coletivo relativo à coleção dos livros vermelhos, quanto de seus trabalhos mais autorais na área de Economia Política Internacional. Um programa pioneiro no país e na América Latina, cuja originalidade é reconhecida todo quadriênio pela própria CAPES e, não por outra razão, tem inspirado outras instituições a seguirem por caminhos semelhantes, como é o caso do programa de pró-graduação em Economia Política Mundo da Universidade Federal do ABC.
Eis um educador, professor, pesquisador, intelectual e publicista, com um raro espírito renascentista, dentro da mais nobre tradição do pensamento crítico latino-americano e comprometido, ao longo de sua vida, com a luta por: um país soberano e democrático; e uma sociedade mais justa e menos desigual. Por tudo isso e por tantas outras razões que escapam ao tempo e ao espaço de minha fala, gostaria de tomar a devida licença e, em nome das pessoas que, em algum momento, tiveram a oportunidade de ler, ouvir, aprender e dialogar com José Luis Fiori, dizer a ele nosso mais profundo e sincero agradecimento por trajetória tão rica, corajosa, brilhante e generosa. Parabéns, meu caro amigo, professor e mestre. Obrigado.
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