“Nós somos um movimento insurgente, não temos nada a ver com o sistema estabelecido. É isso que tem de se manifestar”, provoca o cineasta Paulo Thiago, que vem mostrando no Brasil seu documentário “Memórias do Grupo Opinião”, sobre insurgentes da classe artística que se rebelaram contra a ditadura militar desde os primeiros momentos do golpe de 1964.

Em entrevista ao TUTAMÉIA (veja o vídeo no alto desta página), Thiago viajou pelas ladeiras da memória, mas não deixou de se referir ao tempo presente e o quanto se pode, hoje, beber na experiência dos resistentes dos anos 1960:

“O Opinião foi um grupo de intelectuais, de escritores, de músicos, de artistas brasileiros que, logo depois do golpe de 64, se organizaram para fazer um movimento de resistência artística, uma forma de resistência à ditadura militar, através da arte. O Opinião teve essa capacidade de aglutinar vários grupos para fazer a resistência. Aquilo tudo fazia um bloco, um bloco de pessoas que pensavam, discutiam, conversavam, criavam juntas. Foi uma pena que isso tenha sido rompido, e eu acho que tem de ser retomado.  Agora que nós estamos vivendo em tempos difíceis, acho que não basta as pessoas ficarem defendendo os interesses do business, dos negócios, porque tudo isso afeta todo mundo.”

Algo que João das Neves –um dos fundadores do grupo, morto no ano passado aos 84 anos–, também destaca em seu depoimento registrado no filme de Thiago, cujo trailer mostramos a seguir:

Trazer o Opinião como exemplo para os dias de hoje talvez seja uma das funções do documentário, que foge um pouco do caminho institucional, didático, para costurar, como diz o título, memórias de gente que participou da formação do grupo, da trajetória do grupo. Memórias do próprio Thiago, que também, então como cantor, esteve presente em shows do Opinião no Rio de Janeiro.

“Eu vivi aquilo ali, aquele processo”, conta ao TUTAMÉIA Paulo Thiago, que hoje tem 73 anos. “Eu era muito jovem, tinha 18, 19 anos. Entrei na faculdade em 1964 , em 64 eu assisti ao show do Opinião, participei daquilo tudo. Em 65 é que eu me vinculei a um espetáculo que eles fizeram, chamado “O Samba Pede Passagem”, que substituiu um outro, “Brasil pede Passagem”, que foi censurado. O trabalho do grupo Opinião impactou o Rio de Janeiro naquela época, impactou o Brasil. Virou um manifesto político contra a ditadura.”

O que teve consequências: censura, perseguições, ataques físicos aos artistas. “Teve até um delegado que queria prender a Nara!”, diz Thiago ao TUTAMÉIA, num tom ao mesmo tempo indignado e inda hoje estupefato com a besteira do policial.

Nara Leão era a expressão viva, musical, do trabalho político que se desenvolvia na época, tentando unir o morro com os intelectuais e estudantes que atuavam contra a ditadura, o povão e a classe média. Musa da bossa nova, trazia agora aos palcos do Brasil o som e a palavra nascidos na favela –como bem ilustra a foto abaixo, em que ela aparece com Zé Keti (esq.) e João do Vale.

Prender Nara seria a resposta não só a sua atividade artística e cultural mas também contra suas palavras desafiadoras à ditadura militar: em entrevista ao “Diario de Notícias”, em 1966, a cantora mandou ver, afirmando: “Os militares podem entender de canhão ou de metralhadora, mas não pescam nada de política”.

A ideia de jogar a cantora no cárcere, lembra Thiago, provocou até a ira do poeta Carlos Drummond de Andrade, que fez então um poema de protesto, um apelo ao bom senso das autoridades ditatoriais –que reproduzimos a seguir na íntegra. É o seguinte:

APELO: NÃO DEIXE QUE PRENDAM NARA LEÃO

Carlos Drummond de Andrade

Meu honrado marechal
Dirigente da nação
Venho fazer-lhe um apelo
Não prenda Nara Leão

Soube que a Guerra, por conta,
Lhe quer dar uma lição. Vai enquadrá-la
– esta é forte –
Artigo tal… não sei não

A menina disse coisas
De causar estremeção?
Pois a voz de uma garota
Abala a revolução?

Nara quis separar
O civil do capitão
Em nossa ordem social
Lançar desagregação?

Será que ela tem na fala,
Mais do que charme, canhão?
Ou pensam que, pelo nome,
Em vez de Nara, é leão?

Se o general Costa e Silva,
Já nosso meio-chefão
Tem pinta de boa praça,
Porque tal irritação?

Ou foi alguém que, do contra,
Quis criar amolação
A seu
Artur, inventando

Este caso sem razão?
Que disse a mocinha, enfim,
De inspirado pelo cão?
Que é pela paz e amor
E contra a destruição?

E, depois, se não há preso,
Político na ocasião,
Por que fazer da menina
Uma única exceção?

Ah, marechal, compre um disco
De Nara, tão doce, tão
Meigamente brasileira,
E remeta ao escalão;

Ao ouvir o que ela canta
E penetra o coração,
O que é música de embalo
Em meio a tanta aflição.

O gabinete zangado
Que fez um tarantantão,
Denunciando Narinha,
Mudava de opinião.

De música precisamos
Para pegar o rojão,
Para viver e sorrir,
Que não está mole não.

Nara é pássaro, sabia?
E nem adianta prisão
Para a voz que pelos ares,
Espalha sua canção.

Meu ilustre general,
Dirigente da nação,
Não deixe, nem de brinquedo,
Que prendam Nara Leão.

A poesia, de humor afiado e ironia cortante, demonstra bem o poder da arte de expor as entranhas dos poderosos. É o que fazia o Opinião e que, no entender de Thiago, pode e precisa ser recuperado nos dias de hoje.

“De certa forma”, diz ele sobre seu filme, “falar do grupo Opinião, no qual aquilo tudo estava junto, o grupo e tudo o que aconteceu ao redor, é um exemplo importante, importante para as pessoas que estão aí militando, fazendo o seu trabalho, e para a nova geração tomar conhecimento disso. Conhecer a história brasileira, resgatar a história brasileira. Isso é muito importante não apenas como ilustração, como conhecimento, mas como exemplo”.

Exemplo principalmente, na opinião dele, da possibilidade de integrar as várias manifestações artísticas –teatro, música, literatura, artes plásticas, tudo—para criar um movimento único, de rebeldia, de resistência, de insurgência.

Necessário na época e necessário hoje, quando novamente os artistas são atacados das mais diversas formas pelo governo –uma delas, a redução de patrocínio, os cortes de incentivos, a modificação da lei Rouanet.

“Não é só a parte econômica que é atingida, essa perseguição é uma questão ideológica. Não é que eles querem nos atingir porque sejamos corruptos: nós somos acusados de tudo isso porque nós somos um movimento insurgente. Nós incomodamos muito. A área cultural, os músicos, os compositores, tudo isso é divergente, não tem nada a ver com o sistema estabelecido. O sistema como um todo, desde os bancos institucionalizados –é chato falar mal de banco, porque a gente precisa deles para sobreviver–, mas acontece o seguinte: desde os bancos até as grandes empresas multinacionais, passando pelo staff governamental, todos são incomodados pelo processo artístico, porque é a grande manifestação insurgente da sociedade. Então é isso que tem de se manifestar.”