“A jogada de Bolsonaro é imprimir mais violência, multiplicar casos, trazer para a agenda essas questões, radicalizar as polarizações na sociedade em torno desse tipo de discurso. A jogada do bolsonarismo, do Claudio Castro aqui no Rio, da ultradireita, dos fascistas é: vamos multiplicar os casos, vamos jogá-los no caldeirão desse debate infindo. Bolsonaro não tem mais nada a propor senão violência e arma. Temos que ter muito cuidado. Não vamos nos silenciar, mas vamos denunciar a operação e apontar para a agenda popular, que é a pauta da miséria, da fome, do desalento, do desemprego, da destruição do nosso país”.

É o que afirma ao TUTAMÉIA o antropólogo Luiz Eduardo Soares ao examinar a chacina promovida por policiais no Complexo da Penha, no Rio, e o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, executado por policias rodoviários em Sergipe.

“Quando as polícias estão atuando dessa maneira, não estão agindo como polícias no sentido estrito. Isso nada tem a ver com legalidade, com Constituição, ou com qualquer missão institucional. São policiais, sim. Mas são policiais agindo de acordo com políticas a serviço de um ímpeto social que é abominável. Não dá para discutir como sendo uma operação de segurança pública”, afirma Soares.

Cientista político, dramaturgo, pós-doutor em filosofia política, professor da UERJ, ele foi secretário nacional de segurança pública. É autor, entre outros, de “Meu Casaco de General” (2000), “Desmilitarizar” (2019), “O Brasil e seu Duplo” (2019). Nesta entrevista, ele examina a questão da violência policial e expõe preocupações sobre o processo eleitoral nos próximos meses (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

FASCISMO REVOLVE GAVETAS

“Não tem nenhum suporte legal uma coisa dessas [a chacina no Rio e o assassinato de Genivaldo]. Estamos diante de fenômenos que transcendem as gavetinhas que os classificam de um modo tradicional. O fascismo revolve essas gavetas, impõe a desordem, joga no chão essas roupas, essas tralhas, esses objetos. Estamos pisando num território em ruínas. O que resta da democracia é o que puder sobreviver. É ter alguma lucidez diante do que está ocorrendo. Não podemos silenciar”, declara.

Soares percorre a história do país da perspectiva da violência:

“No mundo policial e da justiça criminal, tivemos encarceramento em massa, esse teatro de horrores que é a chamada guerra às drogas e temos tido sistematicamente a violência policial letal com a anuência das instituições. Por isso, convivemos com essa contradição que está no seio da democracia. É como se diante de nós houvesse tanto sangue com essa barbárie, que se repete todos os dias, e nós passássemos ao largo. Como se isso pudesse ser naturalizado. Somos uma democracia, temos instituições –e isso diante de nós. E o genocídio se reproduzindo”.

CHACINA NO RIO É DESAFIO DE BOLSONARO AO STF

O antropólogo afirma que as polícias sempre foram bolsonaristas, antes mesmo da existência de Bolsonaro. “Bolsonaro tem a mesma origem, as mesmas raízes. Essas dinâmicas se cruzam. E Bolsonaro dá corpo a essas crenças, esses valores e inscreve essa cultura corporativa, oriunda dos porões, na institucionalidade política. A originalidade de Bolsonaro é operar essa inscrição na política e corporificar e esse conjunto de crenças e de valores que estavam presentes atuando no dia a dia no meio policial”, observa.

Soares afirma que, em campanha, Bolsonaro resolveu “atacar, hostilizar e humilhar o STF com a graça que dá a Daniel Silveira”. Já no Rio, sua base, “as polícias do Estado do Rio de Janeiro são mobilizadas, com a Polícia Rodoviária Federal para mais uma chacina dessa magnitude. Esse confronto é tão nitidamente um desafio lançado ao STF, que o coronel comandante da Polícia Militar do Rio, que é secretário da polícia militar, declara imediatamente após a operação que a culpa é do Supremo, por conta da ADPF 635, que teria impedido o trabalho policial e, portanto, tornado o Rio de Janeiro uma espécie de paraíso do banditismo, da criminalidade”.

BOLSONARO DÁ ÍMPETO E LEGITIMA A VIOLÊNCIA

Apesar da continuidade histórica da violência, Soares identifica o efeito de Bolsonaro nesse universo:

“Tendo um fascista no poder, que convoca a população a se armar, que suprime as regulações, que flexibiliza o acesso às armas e munições, com um discurso que celebra a violência, a tortura, a brutalidade policial. Esse discurso autoriza as práticas que já estavam em curso. Elas, então, se alimentam e se reforçam. Se já temos essa tendência, tudo isso ganha ímpeto, se legitima ainda com mais vigor e se conecta com o mundo político diretamente”.

DRAMATURGIA DO BEM CONTRA O MAL

Ele segue:

“Não se trata só de uma narrativa. Se trata de uma dramaturgia que envolve a narrativa, performances, cenografias, intervenções diferentes. Isso tudo se apresenta para definir a disputa eleitoral como uma disputa do bem contra o mal. Não há adversários, há inimigos –e esses devem ser abatidos, liquidados O inimigo sintetiza o mal em suas múltiplas dimensões.  E a figura do criminoso parece ser uma espécie de resumo simbólico de sinalização desse mal. E há uma transição uma continuidade simbólica que se estabelece entre os inimigos políticos e os criminosos. A marca racista está aí presente. Reforçam o racismo e o preconceito de classe”.

ESCRAVAGISMO E HOLOCAUSTO

Para o antropólogo, é chocante a participação da PRF na ação no Rio de Janeiro e no assassinato tenebroso de Genivaldo, em Sergipe.

“Essa ação remete ao nazismo. É uma espécie de rememoração tenebrosa do holocausto que alude à morte por sufocamento por gás. Marcelo Yuka dizia que todo camburão é uma rememoração do navio negreiro. É como se aquele veículo da PRF encerrasse em si mesmo o navio negreiro e as câmaras de gás. É escravagismo, é nazismo, tudo isso sintetizado naquele momento inacreditável”.

REALIMENTAÇÃO DO ÓDIO, DO RACISMO E DA INIQUIDADE

Luiz Eduardo Soares condena as ações violentas das polícias e busca interesses envolvidos:

“Tem interesse econômico? Atende aos interesses da burguesia, do imperialismo, do capital financeiro, do neoliberalismo? Estou convencido de que não serve a coisa nenhuma a não ser a reprodução do racismo e das iniquidades de classe. Só aprofundando as divisões as diferenças, as desigualdades. É uma espécie de compulsão à repetição como no plano individual. Há algo aí de compulsão à repetição que se conecta com um ódio que precisa ser realimentado. É como se nós tivéssemos nessas ações um endereçamento da abjeção de tudo que deve ser repudiado pela sociedade racista e classista, tudo que pode ser posto como o avesso, o lixo, o dejeto o escombro, a ruína. Tudo isso é lançado numa direção: a população negra, a população trabalhadora, os territórios vulneráveis”.

Ele segue:

“Isso produz ordem social? Não, não produz ordem nenhuma. Reitera a desordem. No dia seguinte nós vamos ter a mesma tirania local, mais armada ainda. Isso controla o quê? O tráfico? O tráfico está controlado? Houve redução de substâncias ilícitas? Nós temos o quê como resultado disso? Ganham os produtores de armas e munições. Está bem, aí há um lucro. Mas essa vantagem não explica que a sociedade e uma máquina estatal voltem suas baterias, investiam suas energias nessa dramaturgia perversa, tão degradante, devastadora”.

COMITÊS POPULARES CONTRA O GOLPE

Soares lança hipóteses sobre um golpe para melar as eleições, um movimento fora dos padrões tradicionais:

“Imaginemos situações em que as seções eleitorais vivam balbúrdias e vandalismos provocados por populares. Alguém que se finja de bêbado, alguém que diga que digitou alguma coisa e não apareceu e grite e exija que aquilo seja suspenso. Chama alguém e forças policiais locais podem ser pouco rigorosas com isso ou podem agir supostamente em nome da legalidade por uma intervenção que suspenda aquele processo naquele local”.

“Vamos multiplicar isso. Vamos dizer que isso se converta numa declaração pública do presidente no meio das eleições dizendo: ‘as denúncias estão pipocando no Brasil afora; esses comunistas sabem que vão perder e estão criando balbúrdia justamente para inviabilizar o processo eleitoral; vamos exigir ordem’. E surge a possibilidade da suspensão, do adiamento. Se criou o vácuo que é um abismo. Imaginem que há sempre juristas à disposição de qualquer golpe. Mesmo que o TSE defenda a ordem eleitoral, com que meios de ‘enforcement’, de força? Se as polícias lá na base parecem um pouco arredias aqui e ali. E as Forças Armadas acompanham tudo com preocupação, mas à distância”.

“Podemos imaginar situações anteriores ao dia da eleição, na véspera, no dia. Ou nos dias subsequentes. Enfim o inferno é o limite para uma imaginação fascista fértil. Não podemos imaginar que o golpe exija necessariamente coordenação e organização, porque eles são completamente incompetentes e incapazes. As policias não vão arriscar os seus empregos e suas carreiras numa aventura. Mas não é preciso isso. Basta alguns focos aqui e ali de problemas e alguma instrução aqui e ali na ponta de milicianos e segmentos policiais comprometidos, sem assumirem uma posição ilegal, tendam a colaborar com um clima de tensão e de notícias falsas que se espraiam rapidamente”.

Para Soares, existe um nível de incerteza que justifica pesadelos.

“A Justiça não pode fazer mais do que está fazendo. Não seria o caso de nós levarmos à população essa preocupação e apostar na formação de coletivos populares que se dedicassem a imaginar de que maneira um golpe poderia tomar corpo no seu território? Depois de todo o elenco de possibilidades, imaginar o que teria de ser feito com antecipação e ir a instituições e divulgar essas possibilidades? Se nós não incendiarmos a consciência popular, não mobilizarmos a sociedade contra o golpe –que é uma mobilização pela democracia. Mas não em abstrato só. Acho que vamos estar vulneráveis. Tomara que isso seja só paranoia. Mas é uma paranoia que se justifica diante do que nós já passamos”.