O Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, em entrevista à Fox News na sexta 11 de abril, afirmou:

“O governo Obama desviou o foco e deixou a China invadir toda a América do Sul e Central com suas influências econômicas e culturais. O presidente Trump disse: NÃO MAIS. Vamos investir em maneiras que atendam aos interesses americanos em nosso quintal. Estamos recuperando nosso quintal.”

Estas não são palavras vazias, não são uma figura de linguagem. São palavras vindas do governo de um país com histórico de apoio a golpes de Estado em toda a América Latina e no mundo. A Quarta Frota da Marinha dos EUA estava pronta, em 1964, para invadir o Brasil se houvesse resistência armada ao ataque militar à democracia. CIA, FBI, NSA e todo o poder dos EUA estão por trás – mais ainda: são cúmplices da carnificina no Chile, Argentina e Uruguai durante as décadas de 1970 e 1980. A lista é interminável: Jamaica, República Dominicana, Equador, Bolívia, sem mencionar Venezuela, Nicarágua e Cuba.

As presas, garras e armas dos EUA estão presentes em cada morte de um lutador pela liberdade na América Latina, há décadas, talvez séculos – a Doutrina Monroe tem mais de 200 anos.

Portanto, não podemos levar essas palavras de ânimo leve, não as levamos de ânimo leve. De certa forma, tudo o que falaremos nesta apresentação é exatamente sobre isso: ser ou não ser o quintal de alguém.

A democracia brasileira caminha hoje sobre o fio da navalha, vivendo um equilíbrio tremendamente instável. Há dez anos o país vive sob golpes ou constante ameaças de golpes.

Em 2016, a presidenta Dilma foi derrubada depois de uma criminosa campanha de law fare, que culminou com um impeachment sem nenhuma base legal  –fato hoje reconhecido pelos mesmos tribunais que deram base à ação golpista. Dois anos depois, novo golpe levou o ex-presidente Lula à prisão e o impediu de concorrer às eleições presidenciais.

O resultado foi o governo genocida e entreguista de Bolsonaro, que atuou sobre o país como se fosse uma ocupação estrangeira e passou todo o seu governo tentando golpear ainda mais a democracia, buscando instaurar uma ditadura no Brasil.

Sua política negacionista e antipovo levou à morte centenas de milhares de brasileiros durante a covid. Sua política entreguista desmontou empresas construídas pelo povo brasileiro ao longo de décadas. Sua tentativa de se manter no poder provocou um ataque aos cofres públicos nunca antes visto na história do país.

Mesmo assim, ele foi derrotado. Depois de 580 dias na prisão, Lula voltou à liberdade. Meses mais tarde, o STF reconheceu a ilegalidade de todo o processo que levara à condenação do ex-presidente. Lula estava livre e podia ser candidato.

Apoiado por uma ampla aliança de forças, Lula venceu o fascismo. Mal começou seu governo, no dia oito de janeiro de 2023, houve nova tentativa de golpe, num assalto ao Palácio do Planalto e ao STF que muito lembrou o ataque ao Capitólio de seis de janeiro de 2021.

O golpe foi derrotado, e os golpistas, terroristas processados. Mas forças poderosas no país e interesses externos ainda mais poderosos continuam a atuar contra a vontade do povo expressa nas eleições presidenciais de 2022. Querem reduzir o estado, entregar para exploração externa recursos naturais do país, desestruturar o que resta de grandes empresas estatais, reduzir o espaço democrático e fazer do Brasil um país agroexportador, um grande “fazendão”. Em resumo, voltar aos tempos coloniais.

Por seu lado, o governo, apoiado no plano institucional por uma aliança de partidos que vai da centro-direita à centro esquerda, tenta levar à frente o processo institucional, tendo como grande aliado nesse processo o Supremo Tribunal Federal. Os movimentos sociais e sindicatos, ainda enfraquecidos pelos anos Temer-Bolsonaro, vêm tendo uma atuação discreta, com baixa capacidade de mobilização.

Mesmo assim, há grandes avanços nos terrenos econômico, social e geopolítico.

O ex-presidente Jair Bolsonaro, responsável por uma política criminosa que levou à morte centenas de milhares de brasileiros pela Covid e comandante e arquiteto de várias tentativas de golpe contra a democracia, ainda durante o seu governo e no início do governo Lula, sofre processo judicial que pode leva-lo à prisão.

Quatro generais de quatro estrelas, também envolvido na organização e execução da tentativa de golpe de estado, também estão sendo processados –fato inédito na história brasileira.

Centenas de pessoas envolvidas nas ações terroristas/golpistas de oito de janeiro de 2023 estão presas, muita delas já condenadas a vários anos de cadeia.

O governo Lula, que recebeu de Bolsonaro um país em ruínas –até a expectativa de vida dos brasileiros diminuiu naquele período–, vem conseguindo recuperar a economia, melhorar a distribuição de renda e oferecer melhores condições de vida à população mais pobre. O Brasil resgatou da miséria mais de 14 milhões de pessoas, e está hoje novamente entre as dez maiores economias do mundo.

Lula é uma referência internacional, participando dos principais foros mundiais, sempre defendendo a necessidade de uma reorganização multipolar da comunidade internacional. Tem denunciado o genocídio em Gaza –uma guerra contra mulheres e crianças, como já falou várias vezes, além de lembrar que o único similar histórico dos ataques de Israel ao povo palestino são os crimes cometidos por Hitler contra o povo judeu. Na América Latina, atua para formar uma comunidade que defenda os interesses da região sem se submeter aos interesses dos Estados Unidos.

E, apesar disso tudo, as pesquisas indicam uma desaprovação do governo em níveis jamais atingidos anteriormente. Apesar dos indicadores econômicos, o povo parece estar tomado de desesperança, e vê, segundo as pesquisas, o futuro como um período ainda mais difícil do que o enfrentado atualmente.

Na própria esquerda há contestações ao governo; a política econômica é criticada, assim como as ações e atuações de vários ministros, enquanto declarações de Lula são utilizadas como arma por grupos identitaristas, que chegam ao ponto de fazer publicações muito semelhantes às que fazem os bolsonaristas.

A grande pergunta é: Como chegamos até aqui desse jeito?

Para tentar encontrar respostas, precisamos fazer um mergulho na história.

O Brasil é o maior país da América Latina e é alvo de disputa pelos capitais mundiais em torno de suas riquezas naturais, sua produção, seu mercado consumidor e sua importância geopolítica estratégica. Situado na periferia capitalista, o país não cabe no quintal de ninguém, como se costuma dizer por aqui.  Com 211 milhões de habitantes, é o sétimo maior do mundo em população. Tem 8,5 milhões de quilômetros quadrados –o quinto maior do mundo em área– e a maior diversidade natural do planeta: 20% das espécies estão no país. É a décima maior economia do mundo, com PIB foi de 2,1 trilhões de dólares em 2024.

Ao longo de sua história, foi saqueado pelas potências imperiais e concentrou o maior número de escravizados africanos do mundo: quatro milhões de pessoas, o que representa 40% do total mundial de escravizados entre os séculos 16 e 19.

Vive a desigualdade no campo e nas cidades. Um por centro das propriedades rurais ocupam metade de toda a área agriculturável do país. O um por cento mais rico abocanha 24% da renda total.

O Brasil é palco de lutas continuadas por independência, distribuição de riquezas e justiça. Com uma democracia frágil, viveu uma sucessão de golpes promovidos por suas elites, com fundamental apoio externo, sempre que forças populares ensaiavam ampliar seu espaço no cenário político.

Essa luta tem hoje um novo capítulo com a ascensão da extrema direita, as políticas radicais do governo Trump, a ampliação da força da China na região e no mundo, a criação dos Brics e os desafios do governo Lula, um líder popular sem paralelo no planeta.

A ocupação do território brasileiro foi feita por Portugal com o genocídio da população indígena, a partir do século 16. Os portugueses levaram ouro do Brasil e implantaram no país culturas de açúcar, algodão e café para a exportação. A mão de obra escrava africana foi o motor da economia até o final do século 19, período em que os capitais ingleses dominaram o mercado brasileiro. Depois da Primeira Guerra Mundial, esses capitais passaram a ser substituídos pelos estadunidenses, que predominaram ao longo do século 20. Desde 2009, o principal parceiro comercial do Brasil é a China, que faz investimentos pesados em fábricas, terras, infraestrutura. Desde então, o comércio com a China quadruplicou. As exportações brasileiras para a China superaram, nos dois últimos anos, o total somado das exportações para os Estados Unidos e União Europeia.  Apesar disso, as elites brasileiras orbitam em torno da ideologia, da cultura, do pensamento, do modo de vida e dos interesses econômicos dos Estados Unidos.

Foi em 1930 que o país começou a estruturar seu projeto de nação. Getúlio Vargas liderou uma revolução que organizou o estado nacional, reduziu o poder das oligarquias locais e encaminhou as demandas dos trabalhadores. As bases para a industrialização das décadas seguintes foram lançadas. Numa negociação de Vargas com Roosevelt, durante a segunda guerra mundial, se estabeleceu no país a primeira siderurgia. Após um enorme debate político que enfrentou a oposição dos EUA e de seus aliados no país, foi criada a Petrobrás, estatal do petróleo. Na mesma toada, foram estabelecidos um banco estatal de desenvolvimento e uma empresa nacional de energia.

Acossado pelo imperialismo, que fomentou uma enorme campanha midiática em torno de falsos casos de corrupção, Getúlio Vargas se suicidou em 1954, em meio a uma trama golpista urdida pelos militares que atuavam em conjunto com forças entreguistas. Uma enorme comoção popular tomou conta do país. Locais identificados como pertencentes aos EUA e jornais que atacavam o governo foram depredados. Na sua famosa carta testamento, Getúlio afirmava que os interesses do capital externo contra o país o levaram àquele desfecho trágico. A fúria gerada pelo suicídio adiou o golpe, que só aconteceu dez anos depois, em 1964, com apoio e financiamento dos EUA. Houve mesmo deslocamento de forças militares norte-americanas para o Atlântico Sul.

Nesse meio tempo, a industrialização ganhou força, especialmente com a indústria automobilística, que envolvia capitais externos e nacionais, com financiamento estatal. Sem reforma agrária e com uma histórica concentração de terra, esse processo gerou uma migração para as cidades a partir de meados do século 20, a maior até então no mundo. As cidades cresceram sem planejamento, sem infraestruturas básicas de habitação, saneamento, transporte, ensino e saúde. A população que se deslocava do interior para as capitais encontrou oportunidades precárias e foi aprendendo a lutar por direitos.

O movimento sindical foi crescendo tanto nas cidades quanto em regiões agrícolas voltadas para a exportação, que concentravam um enorme número de trabalhadores, muitos ainda analfabetos. O Partido Comunista tinha influência crescente nas mobilizações e na organização dos trabalhadores. Nessa época começou a ganhar corpo o debate sobre um projeto nacional que atendesse às necessidades da maioria da população e enfrentasse a continuada dependência externa. A discussão envolveu intelectuais, políticos, sindicalistas e industriais e se expressa em livros de Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Caio Prado Júnior.

Esse sentimento nacional percorreu as artes, a literatura, o cinema, a música. A bossa nova da “Garota de Ipanema”, de 1962, o filme “O Pagador de Promessas”, Palma de Ouro em Cannes em 1962, as pinturas de Portinari, como a que está na sede da ONU desde 1957, os livros de Jorge Amado, como Gabriela, Cravo e Canela, de 1958, são exemplos dessa efervescência cultural.

João Goulart, o presidente deposto pelo golpe de 1964, engatava uma série de reformas, aumentando o salário mínimo, prometendo uma reforma agrária e anunciando leis para limitar a remessa de lucros das empresas de capital estrangeiro. Nessa época, subsidiárias da Bond and Share e da ITT, de capital estadunidense, foram estatizadas. Sem investimentos no país e prestando um serviço precário de energia e comunicações, perderam as concessões e levaram o seu protesto para o governo dos EUA.

O papel dos EUA no golpe de 64 no Brasil está muito bem documentado. A partir daquele primeiro de abril, se inicia um período de 21 anos de repressão, tortura e morte, que depois se espalhou pelo continente sul-americano. O filme “Ainda Estou Aqui”, Oscar de melhor filme estrangeiro neste ano, mostra um fragmento dessa história.

O aniquilamento dos movimentos sindicais e populares abriu espaço para uma maior acumulação de capital. Um tripé formado pelo estado e por empresas estrangeiras e nacionais dinamizou a economia. O Brasil chegou a ostentar o título de maior crescimento mundial do século 20, até o início da década de 1980, quando representava 4,3% do PIB mundial. O desenvolvimento da indústria de bens de consumo ajudou a capturar uma parcela da classe média no apoio à ditadura. Paralelamente, a partir dos anos 1970, o governo tratou de ampliar a infraestrutura nacional, deslanchando grandes obras pelo país afora, baseadas no endividamento externo.

Um dos ditadores no Brasil, em 1974, chegou a resumir a situação: “O Brasil vai bem, mas o povo vai mal”.

Naquele ano de 74, a ditadura sofreu o seu primeiro revés de fôlego, com o avanço da oposição nas eleições para um congresso ainda manietado. Até então, a oposição lutara em diversas frentes. No início da ditadura, houve manifestações de massa, logo reprimidas com violência. Depois, parcela dos militantes entrou para a luta armada. O sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, foi um marco desse movimento.

Embora alinhada aos interesses dos EUA, a ditadura teve momentos de esfriamento nas relações com os norte-americanos. Um deles foi em 1975, quando o Brasil assinou um tratado com a Alemanha pra a instalação de usinas nucleares. Sintomaticamente, em 1977, Jimmy Carter passou a vocalizar protestos contra as torturas e as mortes no Brasil.

O projeto da ditadura foi se esvaziando com o avanço dos movimentos sociais, a perda de apoios interno e externo e a mudança no cenário internacional. O arrocho salarial e a inflação crescente desencadearam uma onda de greves a partir de 1979, já lideradas pelo jovem Lula. Ao mesmo tempo, o segundo choque do petróleo e a abrupta elevação das taxas de juros determinada por Paul Volker, dos Estados Unidos, deixaram o governo encurralado. A burguesia nacional, então aliada dos militares, foi se afastando do governo, protestando contra a que considerava excessiva estatização em curso. As greves e o movimento por eleições diretas tomaram as ruas.

Há 40 anos, em março de 1985, a ditadura caiu e um governo civil tomou posse, tentado erguer um projeto nacional. Mas a herança ditatorial deixara o país muito endividado e com alta inflação, bloqueando o seu desenvolvimento. Naquela época a economia brasileira era maior que a chinesa, mas o que se viu nas décadas seguintes foi o Brasil enredado em sucessivas crises econômicas enquanto a China deslanchava no cenário mundial.

Apesar dos entraves econômicos, a volta da democracia possibilitou a construção de um marco essencial para o país: a Constituição de 1988. Por meio dela, só então os analfabetos conquistaram o direito de voto. Foi a Carta que estabeleceu também o Sistema Único de Saúde, que garante acesso público e gratuito à saúde pra todos os cidadãos. Desde então, a Constituição de 88 é o alvo principal do capital. Ano após ano tratam de modificá-la, abrindo o país para o capital estrangeiro, enfraquecendo o Estado, privatizando o orçamento público e retirando direitos dos trabalhadores.

Os governos Collor (1990-92), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Bolsonaro (2019-2022) atuaram sempre com essas diretrizes, desnacionalizando a economia e promovendo um alinhamento subalterno aos Estados Unidos. Collor iniciou esse movimento, mas foi interrompido por dissidências no seio da burguesia, ainda dividida em torno do projeto para o país. Depois, com Fernando Henrique, há a submissão aberta.

Aliado ao capital financeiro internacional, grande parte do empresariado entrou de cabeça na ideia da globalização. Grande parte das empresas de capital nacional, ainda com base familiar, foi vendida a investidores estrangeiros. Privatizações de ativos públicos foram feitas a toque de caixa, usando fundos públicos. O monopólio da exploração do petróleo, instituído por Getúlio Vargas em 1953, foi extinto e as ações da companhia foram colocadas à disposição do mercado internacional na Bolsa de Nova York. A Vale do Rio Doce, estatal que detinha substantiva parcela das reservas minerais, foi vendida por um valor extremamente subestimado, algo equivalente a apenas dois anos de faturamento.

A desindustrialização avançou e a agropecuária ganhou espaço, fazendo o país retroceder para uma economia agrário-exportadora, lembrando antigos tempos coloniais. Só para lembrar, em meados dos anos 1980, a maior parte das exportações brasileiras era de manufaturas. Isso não se repetiu até agora. Ao mesmo tempo, o mercado bancário foi aberto a estrangeiros. A financeirização começou a correr solta. Em troca de socorro financeiro, FHC adere ao tratado de não proliferação nuclear. Em ação obscura, entrega a vigilância da Amazônia à Raytheon norte-americana.

A concentração de renda e de ativos (a terra, especialmente) e a violência crescente nas cidades e no campo voltam a ativar os movimentos sociais. É quando o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realiza marchas pelo país demandando reforma agrária. É quando sindicatos realizam greves e movimentos sociais nas cidades denunciam a violência policial, que carrega no seu DNA os crimes impunes da ditadura militar, anistiados em 1979.

Derrotado pelas forças auxiliares do imperialismo em 1989, 1994 e 1998, Lula vence em 2002. Mesmo sem ter ainda um projeto claro de país, ele se coloca contra a ALCA, que definiu como “uma política de anexação dos Estados Unidos na América Latina”. Sua visão obteve apoio de parte do empresariado ainda nacional. Seus movimentos seguintes foram no sentido de fortalecer o Mercosul, criado logo depois da redemocratização de Brasil e Argentina, e da criação de laços com os países da América do Sul e do Caribe. Na sequência, pela primeira vez os países sul americanos se reuniram para discutir defesa sem a presença dos EUA.

Muito acossado pelo mercado financeiro e por parte do empresariado contrariado de ver na presidência um torneiro mecânico, Lula fez um primeiro mandato na defensiva, tentando driblar as forças retrógradas e mantendo um político conservador no Banco Central. Os juros no Brasil, muito elevados desde a crise da dívida externa nos anos 1980, atraem capitais de todo o mundo, abocanham uma parcela expressiva do orçamento público. Atualmente os gastos com juros correspondem a 8% do PIB.

Uma conta pode ajudar a dimensionar o peso dos juros na economia brasileira. Desde 2005, os juros reais de cinco anos no Brasil foram, em média, de 6,5% ao ano. Esse nível permite ao rentista dobrar o seu capital em 11 anos. Nos EUA, com juros reais de 0,4% ao ano, seriam necessários 173 anos para o investidor dobrar o seu capital.

Esse exemplo ajuda a explicar porque a política de juros, que trava o desenvolvimento do país, obtém apoio, ainda que na surdina, de parte do empresariado e da alta classe média. Empresários ganham mais dinheiro como rentistas do que investindo na produção; a alta classe média tem um padrão de consumo turbinado pelos juros. Principalmente, investidores externos enxergam o Brasil como um playground sem regras para contabilizar resultados como em nenhum outro lugar do mundo.

Assim, quando ainda em 2012 Dilma Rousseff alinhavou um plano para conter os juros, foi ferozmente atacada pela elite, que, a partir daquele momento começou a urdir o golpe de 2016. Mas há outros elementos aqui, que serão tratados adiante.

O projeto de Lula para o país só deslanchou a partir de seu segundo mandato (2007-2010). Para além das iniciativas de combate à fome e à extrema pobreza, o presidente lançou programas de estímulo à indústria, à tecnologia e ciência. A descoberta do pré-sal, em 2006, parecia mudar para sempre a inserção brasileira no cenário internacional. O petróleo, descoberto em águas profundas com tecnologia brasileira da Petrobrás, abriu a janela para a autossuficiência energética do país, até então eterno entrave estrutural para um desenvolvimento soberano. Uma nova modelagem legal, concluída no governo de Dilma Rousseff, limitou a presença estrangeira na exploração e destinou parte da renda petrolífera para fundos de educação e desenvolvimento.

Não foi à toa que uma das primeiras medidas do governo golpista, que tomou posse em 2016, foi acabar com todo esse arcabouço, abrindo às empresas estrangeiras prerrogativas de exploração. Da mesma forma, a Petrobras foi fatiada entre empresas, perdendo todo o setor de distribuição, seus gasodutos e algumas de suas refinarias, deixando em farrapos sua estrutura empresarial, que ficou voltada para os resultados financeiros imediatos, como a distribuição de dividendos, abandonando os princípios de uma empresa pública do povo brasileiro.

Mas antes de falar do golpe de 16, vamos tratar dos antecedentes desse atentado à soberania nacional.

Lula deixou o governo em 2010, com aprovação recorde de 83%. Naquele ano, o PIB cresceu 7,5% e o desemprego caiu a 6,7%, o menor desde 2002. O Brasil reforçou os laços com o Mercosul e com a Unasul, bloco de integração regional que reúne 12 países e debate, também, questões de defesa. É bom lembrar que Bolsonaro desligou o país da união, retomada agora por Lula. Naquele momento, o Brasil, a pedido dos EUA, negociava com o Irã um acordo em torno da questão nuclear, acerto depois renegado por Hillary Clinton. Aqui ocorriam encontros com os países árabes e se organizavam fóruns sociais com movimentos sociais do mundo afora.

Os empresários pareciam satisfeitos e expandiam seus negócios. Grandes construtoras, surgidas a partir das megaobras da ditadura, agora dominavam muitos outros setores, da infraestrutura à indústria de defesa, ganhando concorrências até nos Estados Unidos. Uma política do banco estatal BNDES catapultou para o mercado internacional conglomerados gigantescos em áreas como de carnes, commodities agrícolas, minerais, construção civil e aviação.

No cenário internacional, Lula apostou na criação dos Brics, a primeira articulação de vulto em reação ao domínio imperial desde o movimento dos não alinhados nos anos 1960. Fundado em 2009, no desdobramento da crise financeira gerada a partir do EUA m 2008, o grupo ganhou mais musculatura com o banco dos Brics, instalado na reunião realizada no Brasil em 2014, na presidência de Dilma Rousseff.

Até que tudo desmoronou. As decisivas atuações do Departamento de Justiça dos EUA e da CIA minaram a decolagem brasileira. Acovardada, a burguesia brasileira capitulou às pressões e abandonou a luta. O que se viu durante a Operação Lava Jato foi uma sucessão de ilegalidades com o objetivo de dizimar as empresas brasileiras em ascensão, com a Petrobrás à frente. Uma campanha midiática avassaladora mobilizou as massas ressentidas da classe média contra Dilma Rousseff. O Judiciário também embarcou no golpe, que teve lances de espionagem no telefone da presidente e furto de arquivos sigilosos da Petrobras.

Aliados dos golpistas foram os financistas internacionais, os empresários subordinados aos interesses norte-americanos, os tradicionais reacionários da agropecuária, a mídia e os militares. Os bancos nacionais, que ainda têm um peso considerável no mercado e contradições com a banca externa, resistiram em embarcar no golpismo, mas cederam quando a onda parecia incontornável. Os empresários nacionais, chantageados pela Lava Jato e temendo a onda de prisões, não ofereceram resistência.

A mídia, que no Brasil é controlada por um punhado de famílias e pelo mercado financeiro associado a elas, exerceu seu papel histórico contra os interesses populares e nacionais. Foi também assim nos tempos de Getúlio Vargas e João Goulart.

Os militares, que nos anos 1950 lideraram a campanha pela criação da Petrobras, abdicaram dos interesses nacionais. Desde a Segunda Guerra Mundial, quando lutaram contra o fascismo na Itália sob o comando norte-americano, os militares se associaram aos EUA, assumindo o anticomunismo como espinha dorsal do seu pensamento e comprando material bélico estadunidense. Articularam uma sucessão de golpes contra a democracia, especialmente o de 1964.

Mais recentemente, durante o governo Lula, o Brasil aceitou liderar a missão da ONU e dos EUA no Haiti durante 13 anos (2004-2017), envolvendo mais de 30 mil militares. Foi um desastre. Ao mesmo tempo que promoveram matanças no país caribenho, os militares brasileiros aproveitaram o momento para articular uma nova virada de mesa. Os principais comandantes daquela missão participaram ativamente do governo Bolsonaro e do golpe de estado frustrado de 2023. Um deles está ainda bem ativo no governo do Estado de São Paulo, o mais importante do país, de onde se projeta para disputar a presidência em 2026.

Talvez a participação militar brasileira no Haiti tenha sido um dos mais graves erros estratégicos de Lula. Na hora de decisão, em 2004, o governo iniciante tinha ainda a ilusão de que sua participação no conflito, subordinada aos interesses dos EUA, poderia gerar pontos para a conquista de uma sonhada cadeira no conselho de segurança da ONU. Deu errado em todos os aspectos. Tanto que, no ano passado, Lula descartou a volta do Brasil ao Haiti sugerida por Biden.

De forma generalizada, os militares não escondiam seu desconforto em relação aos governos do PT, especialmente o de Dilma Rousseff, que teve a coragem de instituir a Comissão Nacional da Verdade em 2012. Durante dois anos, o grupo documentou 8 mil casos de violações de direitos durante a ditadura, apontou 377 agentes do Estado como responsáveis pelas violações _a começar pelos ditadores do período_ e identificou 434 casos de mortos e desaparecidos pelo regime. Os militares não engoliram as revelações.

O golpe de 2016 continuou com a prisão de Lula, a proibição de sua participação nas eleições de 2018 (que ocorreu com escancarada pressão militar sobre o supremo tribunal) e a eleição de Bolsonaro.

A eleição de Bolsonaro surpreendeu parcelas da direita tradicional, que apostaram em nomes mais conhecidos do cenário político, como o ex-governador Geraldo Alckmin, hoje vice de Lula. Bolsonaro surfou na onda da extrema direita mundial, sendo eleito praticamente sem alianças, usando e abusando dos recursos das redes sociais já testados no Brexit e na primeira eleição de Trump. Com um discurso extremamente neoliberal e entreguista, ironicamente camuflado com as cores da bandeira nacional, Bolsonaro acabou atraindo uma parcela importante do empresariado, a de olho nos negócios gerados pelas privatizações ou aquela sempre disposta a se alinhar com o governo de plantão.

Prestando literalmente continência à bandeira norte-americana, o militar com histórico terrorista, atuou para entregar as riquezas do país, destruir as instituições do Estado e minar os direitos dos trabalhadores. Privatizou a Eletrobrás, a estatal de energia esboçada por Getúlio Vargas, e nacos da Petrobras. Populações indígenas foram privadas de água e alimento e a Amazônia virou terra sem lei na mão de narco traficantes, mineradoras e madeireiros ilegais. A destruição ambiental sem freios promovida por Bolsonaro deixou marcas em várias regiões do país. Militarizando postos executivos importantes, amplificou a histórica violência no país, além de dar espaço para negócios obscuros.

Negando a ciência e debochando da Covid, seu legado é de morte. Mais da metade das 700 mil vidas perdidas na pandemia poderiam ter sido poupadas se o governo tivesse atuado como o mínimo de cuidado e usando os instrumentos dos quais dispunha. Seu comportamento abjeto nessa tragédia acabou provocando o afastamento de parcelas da classe média e do empresariado que nutriam simpatia pelo seu discurso que demoniza a esquerda e o PT.

Assim, na campanha de 2022, Lula conseguiu atrair setores tradicionais da direita e até uma parcela do empresariado menos conservador. Formou uma frente ampla que lembrou os tempos de derrubada da ditadura militar em meados dos anos 1980. A vitória veio apertada, mostrando a força da extrema direita no país. Força, aliás, histórica.

Foi no Brasil que, nos anos 1930, se desenvolveu o maior partido nazista fora da Alemanha, com 3 mil membros. A Ação Integralista Brasileira, de corte fascista, tentou um golpe de Estado contra Getúlio e estava enraizada em vários estados brasileiros, reunindo professores, funcionários públicos, empresários de diversos ramos.

As digitais da extrema direita estão presentes em todos os movimentos golpistas do século 20, até a última tentativa em 8 de janeiro de 2023. Estudo divulgado em 2022 mostrou que entre janeiro de 2019, quando da posse de Bolsonaro, e maio de 2021, as células de grupos nazistas cresceram 270% no Brasil. A herança escravocrata, o racismo, a homofobia, as redes de ódio amplificadas pela internet estão entre as explicações para o fenômeno.

Ao mesmo tempo, a extrema direita encontra terreno fértil com a fragmentação social impulsionada pela ideologia neoliberal. Em uma economia que alardeia o individualismo, precariza o trabalho e a renda, os vínculos associativos são enfraquecidos. Sindicatos, como acontece em todo o mundo, já não conseguem galvanizar o interesse de trabalhadores dispersos por plataformas escravocratas. Grupos de religiosos católicos progressistas, que foram pontos de apoio essenciais para os movimentos de resistência à ditadura militar e de reconquista de direitos, foram esvaziados desde o papado de João Paulo Segundo. Nas últimas décadas, o espaço religioso foi sendo ocupado por grupos neopentecostais que pregam o individualismo e a cultura do mérito, servindo de base ideológica para o neoliberalismo.

Apesar de tudo isso, Lula ganhou. Naquele momento, houve também ação dos EUA, que não esconderam suas movimentações para desencorajar os militares a dar um golpe e manter Bolsonaro. Ao Partido Democrata não interessava ter um aliado de Trump no poder no Brasil. Mesmo assim, os bolsonaristas nas Forças Armadas brasileiras encararam a aventura golpista, frustrada pela reação conjunta dos poderes da República.

Foi assim que Lula assumiu, encarando uma tentativa de golpe, um estado desmantelado e o congresso mais conservador desde a redemocratização em 1985 –o que é refletido na composição do ministério.

As conhecidas habilidades de Lula na arte da negociação política esbarram nos interesses pessoais de congressistas que apenas pensam em formas de enriquecer e se manter no cargo. De forma inédita, balcanizaram e privatizaram o orçamento público, sufocando políticas públicas e barrando estratégias mais amplas de planos de governo.

Lula apresentou dias atrás um balanço de seus dois primeiros anos de governo. Destacou o crescimento da economia brasileira, o aumento do salário mínimo, o desemprego em queda, a alta dos investimentos. Programas sociais que atendem aos mais pobres, linhas de crédito e uma enorme lista de obras em andamento também foram enfatizados. Tem muito para mostrar, mas ainda não consegue conquistar a opinião majoritária da sociedade, perdendo apoio mesmo entre os mais pobres, teoricamente os que são mais beneficiados pelas suas ações.

Há frustração no ar. Mesmo entre seus principais apoiadores, como o MST, há críticas generalizadas sobe a lentidão do governo em agir. A burguesia aparece na retranca e dividida sobre Lula. Uma parcela já surge apontando candidatos da extrema direita para a eleição do ano que vem, que deve encontrar Bolsonaro preso. A mídia, após uma breve trégua no período eleitoral, segue batendo forte no desempenho de Lula. As big techs lideram a criação do ambiente contra Lula, enquanto o mercado financeiro, especialmente o mais conectado com o exterior, continua sua cruzada antipovo. A agropecuária, grande beneficiária do crédito oficial, não deixa seu posto de inimigo de primeira hora.

É no front externo que Lula navega com mais desenvoltura. Do apoio aos palestinos à recusa de enviar armamentos à Ucrânia, ele dá demonstrações de autonomia. Presidindo os Brics neste ano, se espera um avanço em suas posições agora que Trump escancara seus objetivos de reconquista do que considera seus quintais na América do Sul. Um ponto negativo foi seu posicionamento contra a entrada da Venezuela no grupo, uma demonstração de miopia política que ainda precisa ser melhor explicada.

Nas próximas semanas, Lula vai a Moscou e depois à China. Acabou de voltar do Vietnã. Tem defendido com ênfase a necessidade de integração sul americana, um caminho inexorável se o Brasil traçar um projeto de nação. Advogado do multilateralismo, Lula demonstraria lucidez em buscar valorizar a participação brasileira nos Brics agora ampliado. O Brics, que implode a ordem econômica dos últimos 500 anos, representa 43% do PIB global, concentra 50% das reservas mundiais de petróleo e 60% das reservas mundiais de gás, além de 74% da produção de arroz, 44% da de milho, 48% da de soja e 56% da de trigo.

Desde a posse de Trump, as reações brasileiras contra as medidas imperiais têm sido calculadas, evitando um confronto direto com os EUA. Pesam aí pressões empresariais de curto prazo e um pensamento subalterno que continua arraigado às elites. Nesse momento de terremoto político e econômico, Lula tem o desafio de enfrentar a arrogância e a violência do império que quer de volta o seu quintal. Terá que unir a nação e buscar aliados entre os Brics para atravessar esse período histórico.