“A democracia no Brasil foi seriamente avariada por sua classe dirigente, pelo judiciário sob forte pressão e, nos bastidores, é claro, pelos Estados Unidos. Eles estão satisfeitos com esse resultado [de Bolsonaro]. Ficarão muito felizes de ter um presidente que os ajudará a remover qualquer presidente levemente progressista na região”.
É o que avalia o escritor Tariq Ali em entrevista ao TUTAMÉIA (veja no vídeo no alto da página e increva-se em nosso canal). Sua visão:
“Com a vitória de Bolsonaro, qualquer coisa é possível. Os EUA gostariam de usar os militares brasileiros para ajudá-los. Os EUA sempre gostam de usar regimes militares fortes –oficialmente ou não– para tentar desestabilizar países da América do Sul que eles não gostam. Os EUA vão pressionar as Forças Armadas para que elas se permitam serem usadas para desestabilizar regimes, promover mudanças de regime no continente. Um governo Bolsonaro vai ser usado pelos Estados Unidos e vai se permitir ser usado, porque concorda com os EUA. Não farão essas coisas contra a sua vontade; farão porque concordam”.
Para ele, “os EUA nunca estão ausentes da América do Sul, que consideram como o seu quintal”. Mesmo quando a ênfase dos governos norte-americanos estava nas guerras no Oriente Médio, diz, não houve perda de interesse na região. Ele enfatiza que os Estados Unidos “estiveram por trás do golpe contra Hugo Chávez (em 2002), tentaram derrubar Nicolás Maduro, tentaram desestabilizar o governo cubano, atacaram Morales, e, agora, manobram o governo do Equador, o que é um desastre para nós. Essas políticas no Equador são parte da estratégia de tirar os progressistas da América do Sul dos progressistas”.
Tariq Ali coloca nesse mesmo contexto o processo contra Dilma, “que foi removida por um golpe de Estado”, e na insistência em manter Lula na prisão. No passado, diz, “tentaram contrapor Lula a Chávez; Lula era bom, Chávez era ruim. Agora, Lula é ruim. Os Estados Unidos estão envolvidos”.
DEMOCRACIA SOB ATAQUE; BOLSONARO É DESASTRE COMPLETO
Aos 74 anos, o escritor e cineasta paquistanês tem uma trajetória de militância. Radicado em Londres, estudou ciência política e filosofia em Oxford. Escreveu mais de duas dúzias de livros, entre romances e publicações sobre a história mundial. É hoje editor da “New Left Review”.
Na juventude, ele foi militante contra a guerra do Vietnã e conviveu, entre outros, com John Lennon. Foi para Ali que Lennon ligou para mostrar “Power to the People”. Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, via internet, desde Londres, o escritor rememora esse momento e outros.
Ali considera uma possível eleição de Jair Bolsonaro “um total e completo desastre político para o Brasil. Ele é um político de extrema direita, que apoia a ditadura militar, a tortura, a brutalidade, a prisão sem julgamento, coisas que, no passado, forçaram ao exílio muitos brasileiros –eu me lembro bem deles”.
E mais: “Internamente, esse seria um governo orientado para os ricos que o apoiam. Tentarão calar qualquer voz dissidente”. Na sua análise, a ação dos sindicatos de trabalhadores será enfraquecida e haverá repressão. “Espero estar errado; tenho medo de estar certo. A democracia brasileira está abalada, sofrendo um severo ataque cardíaco”.
TRISTEZA E ARREPENDIMENTO
Muito cético com a possibilidade de que o segundo turno possa derrotar a extrema direita, Ali desabafa:
“Estou muito triste. Os brasileiros que votam por Bolsonaro vão se arrepender. Especialmente os pobres vão se arrepender antes do que as pessoas pensam e tentarão fazer algo”.
Embora sempre muito crítico ao PT (o que fica evidente na entrevista, em que defende uma autocrítica do partido), Ali é um defensor da liberdade para Lula. Meses atrás, encabeçou um manifesto internacional denunciando as irregularidades do processo judicial e pedindo a libertação do ex-presidente.
“Temos que perguntar se todas a pessoas envolvidas na conspiração para tirar Lula da corrida presidencial estão felizes. Algumas talvez estejam pensando que, talvez, tenham ido longe demais. Mas não o importa o que estejam pensando. É muito tarde. Porque o processo que eles colocaram em movimento agora impede que o único candidato que poderia derrotar Bolsonaro esteja na eleição. Com Lula, teríamos vencido, ou a perda seria por margem muito pequena. Qualquer um com algum senso deveria apoiar Lula. Para prevenir esse desastre de acontecer. Os dominadores sabiam que Lula deveria ser afastado dessa eleição”.

Vanessa Redgrave e Tariq Ali em protesto contra a Guerra do Vietnã, em 1968

RAIVA, BREXIT, TRUMP E BOLSONARO
Na análise de Ali, há muitas diferenças entre o processo que o Brasil está vivendo e o que ocorre em outras partes do mundo.
Na Grã-Bretanha, diz, o Brexit não foi apenas uma vitória da direita. “Foi uma forma pela qual muitos trabalhadores e outros chutam o neoliberalismo. Foi uma onda de raiva contra a ordem neoliberal. Claro que havia também grupos racistas e ultradireitistas que tentaram tirar vantagem disto. Mas, ao final, com o Brexit, tivemos Jeremy Corbyn como líder do partido trabalhista ganhando mais votos, a maior votação no século”.
Para o escritor, “Trump é um projeto do fracasso de Obama. Não há forma de separar Trump dos fracassos de Obama no mundo e nos EUA. Trump usou demagogia”. E no Brasil?
“A diferença é que Bolsonaro nunca fingiu ser algo que ele não é. Ele fala o que ele é. Ataca o PT e defende a ditadura militar. É muito diferente do que acontece em outros lugares do mundo. É um cara dizendo: ‘Sim, eu sou da direita, vou restaurar estabilidade e a ordem, o meu modelo é a ditadura militar”, afirma.
Relacionando os fatos com a crise capitalista, Ali avalia os avanços da direita em outros países e ressalta o aumento da concentração de renda. Recomendando sempre a necessidade de uma autocrítica, declara: “A esquerda ainda não se recobrou da queda da URSS”.
Ativista do Maio 68, perguntamos a Ali sobre o legado daquele movimento. Sua resposta:
“No Brasil, em 1968, havia uma ditadura. O Brasil está comemorando o Maio de 68 elegendo um candidato que apoia a ditadura. No México é o contrário. O legado é misto. Tivemos a coragem de pensar que poderíamos mudar o mundo. Não vencemos, mas não nos arrependemos. Estávamos mais certo do que se imagina. E muita coisa que dissemos ainda continua válida em termo do que é o capitalismo. É mais verdade hoje do que era nos 1960”.