Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz (1950-2019) foi o último comandante da ALN (Ação Libertadora Nacional), organização construída por Carlos Marighella para enfrentar com armas a ditadura militar no Brasil. A trajetória do guerrilheiro está contada agora no filme “Codinome Clemente”, de Isa Albuquerque. Para debater o documentário, TUTAMÉIA reuniu a cineasta, a historiadora Maria Cláudia Badan Ribeiro e Maurice Politi, diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política.

“É um filme contra o revisionismo histórico e a favor da memória dos fatos. Foi um privilégio muito grande poder investigar os anos 60 através de um agente histórico real. Carlos Eugênio é um personagem muito admirável por tudo que ele viveu. Ele teve uma trajetória emblemática de sua geração”, diz a diretora Isa Albuquerque (acompanhe o debate no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“Codinome Clemente” é o seu terceiro longa-metragem, depois de duas ficções: “Ouro Negro” (2009/2010) e “Histórias do Olhar” (2003). Na conversa, ela trata dos bastidores de sua produção mais recente e do seu processo de criação:

“Procurei dar ênfase para a subjetividade desse personagem. Espero que ajude a consolidar a consciência do jovem de hoje que estão em busca de ideais. Infelizmente, com esse consumismo hedonista em escala global que prevalece hoje, infelizmente se perdeu o senso de coletividade”. Ela segue:

“Não há mais justificativa para fome. Hoje o mundo produz um quilo de grãos por dia por habitante. A falta de acesso à comida já poderia ter sido resolvida. A fome é uma questão política. Havia esse senso de coletividade lá nos anos 1960. Por isso, esses jovens lutaram tanto e entregaram as próprias vidas para uma causa. Investigar seus motivos, seus sentimentos sua consciência é fundamental para entender porque estamos hoje aqui. Estamos à mercê da caquistocracia dominante, o governo dos piores. Estamos nos deixando dominar pelos piores”.

Já Maria Cláudia Badan Ribeiro conta sobre sua convivência com Paz. Autora de “Mulheres na Luta Armada” (Alameda), ela fala da trajetória do guerrilheiro que nunca foi preso pela ditadura militar. Clemente atuou em várias ações armadas, entre elas a que eliminou o industrial dinamarquês Henning Boilesen, que financiava a tortura e assistia a sessões de terror no DOI-Codi. A história desse personagem foi retratada por Chain Litewski no premiado documentário “Cidadão Boilesen” (2009).

Paz também participou, em 1971, do assassinato de Márcio Leite de Toledo, militante da ALN, então suspeito de traição –um episódio que atormentou o guerrilheiro durante décadas, como lembra Maria Cláudia. No exílio, Clemente estudou música. Depois da anistia, voltou ao Brasil e se tornou professor. Foi um dos últimos a ser anistiado, em 1982. Até 1999, em pleno governo FHC, foi monitorado pelas forças repressivas.

Para Maria Cláudia, o filme “Codinome Clemente” é uma homenagem a Carlos Eugênio:

“Ele lutou como o Chê, até o último homem. Ele defendeu com coragem e convicção suas ideias. Teve a postura ética de assumir os seus erros. Cobram dele uma autocrítica, mas ele escreveu: que em nenhum momento seja dado a nenhum grupo o direito de escolher o momento de vida e morte de um outro ser humano“.

Companheira do guerrilheiro em seus últimos anos, ela fala:

“A música o ajudou a voltar a ser humano. A Isa quis mostrar a trajetória de um homem e seus dilemas de guerra. Isso é muito importante. Não vi nenhum filme falando do custo pessoal também. Carlos Eugênio passou mais de 20 anos fazendo terapia. Ele estava ali naquele momento. Aquela decisão [morte de Toledo] foi tomada em conjunto, mas custou a ele uma dor. O justiçamento era uma coisa prescrita pela ALN e outras organizações. Ele rompeu o pacto de silêncio. Assumiu o que fez de bravura e de covardia”.

No debate promovido pelo TUTAMÉIA, Maurice Politi descreveu sua atuação na ALN e as razões que levaram muitos da sua geração a aderir à luta armada. Ativista do movimento estudantil, ele entrou na faculdade de jornalismo em 1968. Por causa de sua militância foi preso em 1970 e condenado a quatro anos de prisão política. Depois de cumprir a totalidade de sua condenação, foi expulso do Brasil. Regressou ao país depois da anistia de 1979.

Autor de “Resistência Atrás das Grades” (2009), participou da elaboração da lei que criou, em 2012, a Comissão Nacional da Verdade. Entrevistado no filme de Isa Albuquerque, ele fala do combate à ditadura militar e dos dias atuais. Trata da hecatombe da Covid, muito resultante da política de Bolsonaro, e da matança no Jacarezinho, no início de maio.

“As pessoas foram barbaramente assassinadas. Estamos vivendo num país com tal monstruosidade –que é elogiada por esse governo. É uma dor muito grande ter um governo que elogia a morte de 28 pessoas numa rave numa favela”, afirma.

Para Politi, fatos como esse mostram a necessidade de o país discutir o seu passado, “o que houve no Brasil nessa ditadura assassina que nos governou durante 21 anos”. Diz ele:

“São ações que se repetem hoje e são elogiadas por um governo fascista assassino, um governo que brinca de governar. E uma tragédia para o Brasil e vai demorar para nos recuperarmos. Filmes como ‘Codinome Clemente’, que retratam a época da ditadura, são um espelho para que os jovens possam ver que nós vivemos no Brasil. Estivemos em situações trágicas e conseguimos sair. Então, dessa também sairemos”.

FINANCIAMENTO COLETIVO

Isa conta que está fazendo uma campanha para pagamento de despesas imediatas do projeto do filme. Interessados em apoiar o projeto podem saber mais CLICANDO AQUI.

“Temos um recurso de lançamento, publicado em Diário Oficial, destinado ao pagamento dos serviços da O2 Play, distribuidora do filme. Mas estamos lutando judicialmente para libertá-lo. Como todas as linhas de financiamento destinadas à produção cinematográfica foram suspensas e enfrentamos o absoluto desprezo contra as artes, ao conhecimento, à Ciência e à Educação, não temos como prever se haverá a reativação da atividade”, afirma.

Daí, completa, há uma luta para que o filme faça sua estreia nos drive ins e, depois, nas plataformas de streaming. “A colaboração da militância é fundamental para enfrentarmos essa travessia”, ressalta a cineasta.