“Eu não acredito num golpe militar. Não houve golpe militar no Brasil sem apoio das elites, elites midiáticas, elites econômicas, elites em geral. Em 1964 a participação militar foi muito importante, mas havia um apoio muito forte da classe média, sem falar nos jornais. Isso hoje em dia não existe. Na classe média, existem uns bolsonaristas, mas é um outro setor. Mas não é da elite. Haverá um ou outro empresário que prefere Bolsonaro a Lula. Em 64, o comportamento da Fiesp era altamente golpista. Hoje não haveria apoio para isso. Hoje, está muito claro que o Lula vai ser um líder moderado. Se precisasse um selo para dar mais confiança aos desconfiados, ele escolheu o Alckmin para ser seu vice. É preciso ser muito radicalmente contra qualquer medida de justiça social para apoiar o Bolsonaro. A destruição que ele fez no Brasil é total”.
Palavras de Celso Amorim ao TUTAMÉIA. Ministro das relações exteriores (com Lula e Itamar) e da defesa (com Dilma), ele trata, nesta entrevista, da “tensão natural” entre Brasil e Estados Unidos, das mudanças na política externa brasileira (“que passou de um festival de loucuras a uma certa mediocridade”), das Forças Armadas, de saídas para a guerra na Ucrânia, da complexidade da geopolítica mundial nos dias de hoje. Às vésperas de completar 80 anos (em 3 de junho), ele rememora alegrias e tristezas na sua trajetória. Fala de cinema e de desafios para Lula. E afirma:
“Estou mais interessado nos próximos 10 anos. Quero um mundo mais pacífico. Vivo hoje, fora a crise dos mísseis, o momento de maior perigo de uma guerra mundial desde que eu comecei a pensar em política” (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
Alguns trechos:
MUDANÇAS NA GEOPOLÍTICA MUNDIAL
“A situação geopolítica no mundo mudou. A possibilidade de o Lula ganhar, independentemente da atitude norte-americana, é muito forte. Eles não vão querer hostilizar previamente o Lula numa situação em que eles estão num combate geopolítico de grande risco”.
“O mundo hoje é muito mais complexo. O que temos hoje é pior do que uma guerra fria. Hoje temos uma guerra; até certo ponto, é uma guerra mundial. Ela não é total porque não está sendo usada a totalidade do potencial militar de cada país e não há declaração de guerra formal entre os países. Mas envolve praticamente todos os países ocidentais no sentido tradicional e a Rússia e com o apoio discreto da China e com um renascimento do movimento não alinhado. Isso pelas atividades práticas de países como a Índia, a África do Sul, a Nigéria, a Indonésia e até o Brasil. Essa é uma situação internacional muito mais complexa. E a esquerda no continente está mais preocupada com temas locais e identitários do que com temas geopolíticos”.
PITACO VIOLENTO DOS EUA
“O governo e o estado profundo [nos Estados Unidos] nem sempre estão agindo da mesma maneira. Há uma tensão natural. É da natureza das coisas que haja uma tensão permanente entre a maior potência do continente e o único outro país que pode surgir também como grande potência no continente americano. É o único país que pode propiciar uma integração da América Latina e da América do Sul. Sobretudo, que não seja sob os auspícios de Washington. É o único país que pode caminhar no sentido da América Latina, sobretudo a América do Sul, não ser um quintal dos EUA”.
“O estado profundo vai voltar. O presidente Lula teve uma excelente relação com Bush e com Obama. Excelente. O estado profundo está mais preocupado com o longo prazo. O Brasil crescendo, o pré-sal sob condução da Petrobras, a criação dos Brics, a integração da América Latina, a criação da Unasul. Tudo isso junto fez com que o estado profundo dissesse: ‘Acho que eles estão indo longe demais. Vamos dar um pitaco neles. Foi o que fizeram, um pitaco violento obviamente”.
O governo norte-americano participou disso? Sim, integrantes do governo com certeza, sim. São parte do estado, funcionários do departamento da justiça do FBI, quiçá de outros, alguns do departamento de estado. Obviamente isso, em algum momento, deve ter chegado ao ouvido do presidente, que era o Obama. E ele deve ter dito…vai lá. Acho que não foi um plano dele”.
“Isso vai voltar em algum momento do futuro, talvez. A história se repte, uma vez como tragédia, outra como comédia. Mas não é bem isso. Mesmo quando ela se repete, ela se repete de forma diferente. O golpe de 64 foi com tanque na rua. O golpe contra a Dilma e o Lula, que foi um golpe só. São dois golpes muito diferentes. Se ocorrer agora, será diferente também da anterior. Ao Brasil interessa ter uma boa relação com os EUA.
SOBRE OS MILITARES E GOLPE
“É preciso distinguir as Forças Armadas como instituição da corporação militar. Da mesma maneira que a corporação dos diplomatas não é a mesma coisa que o Itamaraty. Quando as Forças Armadas se movem, quem dirige isso é o alto comando. E o que eu vejo no alto comando não é uma atitude golpista”.
“Na hora de agirem ou de deixarem de agir, eles têm uma visão um pouco mais constitucional. Eles percebem o clima. Em 64 eles sabiam que ficariam bem com grande parte da sociedade brasileira, inclusive com aqueles que tinham poder. Até o tuíte do Villas-Bôas, que é uma participação mais óbvia dos militares, não se pode dizer que eles é que lideraram o golpe contra a Dilma, e depois contra o Lula. É uma coisa que só aconteceu porque tinha o apoio total da elite, da mídia. É óbvio isso. Agora não existe esse clima”.
“A maneira como as coisas se passaram no 7 de Setembro me dá esperança que não venha a ter o pior, que é se as Forças Armadas pudessem participar do golpe por omissão. Não por ação, mas por omissão. É possível. Se você pensar na invasão do Capitólio, foi a guarda nacional que responde diretamente ao Pentágono, que é uma espécie de guarda reserva, foi ela que agiu. Se fosse depender da polícia do Distrito Federal ou do próprio Congresso. Foi mais ou menos o que aconteceu na Bolívia. Nos EUA, se a guarda nacional não agisse, o golpe estava dado”.
“Tenho um pouquinho de preocupação com isso. É o risco que a gente corre. Acho pouco provável que eles tomem uma atitude de golpe. Em última análise, as Forças Armadas não gostam de serem tratadas como forças pretorianas”.
“Não acredito que eles tomem a iniciativa do golpe, mas temo o que possa acontecer se houver uma situação de grande conturbação. Se a diferença de votos [a favor de Lula] for muito grande, a possibilidade de um golpe diminui muito. Acho muito, muito improvável”.
“É um suicídio para as próprias Forças Armadas deixarem crescer essa coisa da milícia. Aconteceu na Alemanha nazista, onde as Forças Armadas acabaram se rendendo ao hitlerismo. A situação lá era complexa, diferente. Hoje a situação é muito diferente”.
GUERRA NA UCRÂNIA
“Não justifico o que Putin fez. Putin errou. Errou juridicamente. É uma linha que não pode ser transgredida. É o uso da força unilateral. A carta da ONU é construída em torno dessa ideia. Putin não pode alegar legitima defesa preventiva. Mas não foi uma boa ideia expandir a Otan”.
“A Rússia é grande demais para ser destruída. O esforço de debilitar a Rússia pode gerar uma inimizade muito mais permanente com riscos para o futuro. Uma aparente vitória atual do ocidente pode significar um perigo. A Rússia sai enfraquecida, mas vai cuidar de se armar, de se fortalecer, de estar tão pouco dependente da globalização quanto possível. Vai tentar se juntar mais à China. Não sei se é bom ou é ruim, mas sei que é muito perigoso. Não sinto urgência em terminar a guerra. Falta vontade política dos dois lados”.
BRASIL E ESTADOS UNIDOS
“Não acho que aja necessariamente uma aproximação. Há um reconhecimento fundamental de que o Brasil é um país grande demais para ser ignorado”.
“Essa relação hostil com o Biden, apesar de todas as vindas aqui, fez com que o Itamaraty emergisse. E aquilo que está mais ligado a uma diplomacia tradicional no Brasil aparecesse. E aparecesse de maneira positiva”.
ITAMARATY: DA LOUCURA À MEDIOCRIDADE
“As votações [sobre o conflito na Ucrânia] não são absurdas. Mesmo no caso em que o Brasil acabou votando a favor de uma resolução, como foi o caso do conselho de segurança, a favor da resolução condenatória, mas o discurso busca claramente equilibrar. Quando se discutiu a questão de sanções, o representante brasileiro chega a dizer que as sanções fazem tanto mal quanto a guerra. É forte. Num momento em que você vê praticamente todo o ocidente engajado na guerra contra a Rússia”.
“Em outros aspectos o brasil tem tomado posições mais discretas, tem sido menos obvio em questões de direitos humanos. Bem ou mal, a coisa caminhou para um certo pragmatismo. Internamente, o que explica isso é uma certa mudança relativa de eixo em função das loucuras do Araújo”.
“Há um certo pragmatismo do tipo centrão. Essa visão um pouco mais centrão foi também para a política externa e as coisas mais abusivas foram sendo mitigadas. A política externa brasileira passou de um festival de loucuras a uma certa mediocridade. Mas foi um progresso. Quando a gente considera mediocridade um progresso é sinal de que estamos mal”.
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