Desenvolvimento, desigualdades, pobreza, industrialização, movimentos sociais, classes médias, militares, golpe. Poesia, romance, viagens, livros, seminários, ensaios. Violência, falta de dinheiro, de trabalho, de passaporte. Desânimo e esperança.

Todos esses temas e muitos outros estão nas trocas de cartas que Celso Furtado manteve durante décadas com os mais destacados intelectuais da segunda metade do século 20. Uma fração delas está reunida em “Celso Furtado: Correspondência Intelectual, 1949-2004”.

A seleção foi feita por Rosa Freire D’Aguiar, que falou ao TUTAMÉIA sobre a obra. Jornalista e tradutora, ela é viúva do economista, autor do clássico “Formação Econômica do Brasil” (1959) –obrigatório para se entender o país.

“São 300 cartas trocadas entre Celso e uns 80 interlocutores, sendo 50 brasileiros. O livro é importante porque traz não só a correspondência entre duas pessoas. Ali você tem a ideia realmente de um grupo conversando numa roda; eles poderiam estar em torno de uma mesa, bebendo, comendo, discutindo. Há um leque de pessoas que atuaram, que foram observadores muito lúcidos, certeiros e rigorosos da realidade do Brasil, da América Latina dos Estados Unidos, da Europa”, diz Rosa (acompanhe a entrevista no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV). Ela segue:

“São grandes intelectuais pensando esses países, essas regiões do mundo. Dá para ter uma ideia do que aconteceu na segunda metade do século 20”.

Nas páginas passeiam nomes como Bertrand Russell, Fidel Castro, Darcy Ribeiro, Jack Lang, Antonio Candido, Robert Kennedy, Maria da Conceição Tavares, Henry Kissinger, Javier Pérez de Cuellar, Thiago de Mello, Ernesto Sábato, Antonio Callado, Otto Maria Carpeaux, Marcio Moreira Alves.

Da conversa, por exemplo, entre Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso se pode acompanhar os caminhos da teoria da dependência.

“Tem ali uma espécie de um caldeirão de ideias que é um fascínio. O que impressiona é a franqueza com que eles falam um do outro, tudo muito respeitoso. Tem muita troca de ideias. É, de fato, um laboratório de ideias”.

Primeiro ministro do planejamento do país, Celso Furtado (1920-2004) partiu para o exílio em maio de 1964. Seu nome estava na primeira lista de punidos pelo Ato Institucional nº 1 baixado pela ditadura militar. Criador da Sudene e já reconhecido internacionalmente, foi convidado a atuar em várias universidades no exterior. Acabou se fixando na Sorbonne, ficando quase 20 anos fora do Brasil.

De Paris, ele acompanhou exilados, intelectuais e militantes políticos naqueles tempos de terror, de resistência e, depois, a rota para a redemocratização.

Em março de 1971, numa das épocas mais terríveis da ditadura, Celso troca cartas com Maria da Conceição Tavares. Do Chile, a economista faz um desabafo que pode ecoar nos dias de hoje:

“As férias que recém acabo de passar no Brasil foram muito dolorosas frente ao panorama atual, e deixaram-me afogada em ódio e espanto! Aquele maldito capitalismo doido e o miserável Estado nazista que estão implantando sobre a caveira da nossa gente estão me deixando num paroxismo de angústia que tenho de extravasar de algum modo!”

Rosa comenta:

“Celso se expressa de forma mais contida, comedida, exatamente para tentar dar uma espécie de continuidade e um pouco mais de permanência. E é isso que impressiona nessas cartas, não só as dele, mas a de muitos outros correspondentes da época: é a atualidade que essas cartas mantêm”.

A jornalista segue:

“Dá um certo calafrio também. Que a gente tenha que voltar a esses assuntos, que são assuntos que ainda não tenham sido resolvidos. Mas as cartas existem, a gente olha um pouco para trás e vê que muita gente já pensou esse país, já refletiu sobre esse país e, no caso de Celso e outros também, tentou agir tentou ser ator para mudar a realidade do país. Não foi só uma reflexão. Alguns foram só reflexão, outros não. Foram chamados a contribuir ou como ministros ou, como FHC, como presidente da República. Houve um trabalho de ação e reflexão em vários deles”.

Na redemocratização, Celso Furtado foi ministro da Cultura no governo José Sarney. Rosa destaca carta enviada pelo economista, nos anos 1990, ao ex-presidente:

“Se é verdade que o Estado não foi feito para ajudar os pobres, como afirma o presidente Fernando Henrique Cardoso, não é menos verdade que as forças do mercado são ineptas para dar solução aos problemas estruturais de uma sociedade. Não se trata de ’ajudar os pobres’. Essa, aliás, é uma nobre tarefa que caberá sempre às instituições de caridade. E, sim, de promover mudanças estruturais que permitam às forças do mercado produzir riquezas em benefício da coletividade, e não apenas de uma minoria de privilegiados. Em todos os países ricos e pobres surgem problemas que somente podem ser enfrentados com êxito pelo poder público. Pobre da sociedade que se incapacita para identificar seus próprios problemas e fica na absoluta e total dependência da iniciativa privada”.

A jornalista ressalta a atualidade das palavras. “É triste. Porque você tem impressão que anda para a frente, anda para frente e, daqui a pouco, volta para o ponto zero. Aí começa de novo a caminhada e volta para o marco zero. Isso é muito triste. Mas ao mesmo tempo tem o lado do desafio, né?

Ela afirma:

“Tem as cartas que desanimam porque foram escritas em momentos de muita tristeza para todos eles, de muitos problemas de ter que levar a vida em outro país, outra língua. Mas tem sempre uma espécie de esperança de que aquilo vai mudar. E, de fato, no caso dessa geração, veio a redemocratização. Veio um governo civil, veio depois um governo mais de esquerda, as coisas vieram. Só que, de repente, tem esse tranco mas quero crer que a gente chega lá”, afirma Rosa.

Ela continua:

“É um caminho, a gente está recomeçando. A democracia brasileira está de certa forma pisoteada. Ela não está nem de longe no que deve ser, no que já foi. O pisoteio vem de onde menos se espera, evidentemente do governo, mas além disso. Você ouve um caso aqui, um caso acolá. Um intelectual que manifesta o seu ponto de vista e tem algum tipo de pressão. A gente está vivendo isso”.

E segue:

“Tem que pensar que outras pessoas, outras gerações já batalharam muito por isso e conseguiram. Vamos deixar um mínimo de esperança no ar. Mal ou bem, essa geração sofreu muitos anos de exílio, 20 anos. Alguns longe do país, outros longe de suas cátedras, outros sem poder escrever os seus livros. Outros sendo censurados”.

Ela ressalta:

“A censura foi forte. Convém não esquecer as cartas de alguns editores que eu pus para mostrar como estava a censura dos livros. Livros não podiam ir para as livrarias, ser vendidos. Os próprios livreiros boicotavam, com medo de ter algum comando de caça aos comunistas, de explodir a livraria para os ares. Tudo isso, no atual momento, a gente tem um certo receio. A gente fica pensando que isso não vai acontecer de novo, que não pode acontecer. Mas, de vez em quando, você vê um sinalzinho aqui, um sinalzinho acolá e tem que ficar de olho”.

Em várias cartas fica evidente a preocupação de Furtado e interlocutores com o impacto que o golpe militar trazia para as universidades e na produção acadêmica, especialmente por meio de financiamentos externos com claros objetivos políticos.

“Os Estados Unidos não eram bobos. Depois de conseguir afastar o Jango, tinha que entrar um pouco pelas mentes. Corações e mentes. Entrou. E começou a formar muitos latino-americanistas e muitos brasilianistas. E Celso diz: tudo bem que eles pensem, eles pensam o que eles quiserem. Mas se nós não pensarmos nos nossos problemas, se nós não formos fundo ao que nós queremos para o nosso continente, eles virão com uma visão exógena sem a menor dúvida. Essa percepção eu acho muito importante”.

Para além do debate econômico e político, se destacam conversas com reflexões a respeito da vida. Numa delas, Antonio Callado escreve a Celso Furtado:

“Confesso a v. que tenho saudades enormes da energia que tinha quando, em sua companhia, corremos de uma vaca braba na Paraíba, a caminho de uma entrevista que fiz com a Elizabeth Teixeira. Mas há um ou outro insuspeitado prazer nesta calmaria a que nos obriga a vizinhança dos oitenta anos. Quando o motor do barco começa a ratear, voltamos a usar velas para navegar. E, se levamos muito mais tempo para chegar a qualquer lugar, em compensação vemos muito melhor águas e peixes ao redor, e lua no céu, quando não faz frio e o reumatismo nos permite ficar no convés”.