“As cenas mais duras de todas são as cenas de tortura, sobretudo as cenas que estão ali no núcleo do personagem Jorge, que era o Virgílio [Gomes da Silva], que são histórias que, de alguma forma, eu conhecia e que envolvem prisão de crianças, um tipo de maldade, um tipo de crueldade que nem no “Tropa” a gente tinha, é algo mais profundo. Quebrar a espinha dorsal de uma figura que se predispôs a tudo para fazer deste país um país melhor, para que os filhos dele tivessem uma realidade melhor, como o próprio Marighella. Em especial, a história do Virgílio para mim foi a mais difícil de separar as coisas, a que mais mexeu comigo.”
Assim Rafael Salgado, diretor assistente de “Marighella”, lembra vivências da produção e da filmagem da obra de Wagner Moura, que chega oficialmente aos cinemas do Brasil nesta quinta-feira, 4 de novembro, 52 anos depois do assassinato do grande comandante da resistência armada à ditadura militar.
Em entrevista ao TUTAMÉIA, Salgado fala sobre a importância do filme neste momento da história brasileira, conta bastidores da filmagem e comenta seu envolvimento especial, pessoal, no trabalho –ele é nascido no exílio, filho de João Lopes Salgado, que participou de ações armadas durante a ditadura, em uma delas atuando ao lado de Virgílio Gomes da Silva.
“Quando eu soube que o “Marighella” finalmente ia sair, fiquei muito, muito, muito feliz. Ter conhecido algumas dessas pessoas ou filhos dessas pessoas realmente me dá uma perspectiva um pouco pessoal, uma perspectiva íntima, de pessoas que têm até hoje cicatrizes e que são pessoas da minha família, do meu núcleo próximo de amigos. Fiquei feliz de saber porque de alguma forma isso estava entrando na pauta das produções culturais”, diz ele (confira no vídeo a entrevista na íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
Já tendo trabalhado com Wagner Moura nas duas “Tropa de Elite”, além de outras produções, Salgado construíra uma boa parceria com o diretor, conforme conta:
“O Wagner sempre quis que eu fizesse o filme com ele porque ele sabe do meu envolvimento, conhece a história do meu pai, conhece a história da minha família. É óbvio que, nas cenas de tortura, é muito mais difícil. A gente queria muito fazer um retrato justo, era uma tecla em que o Wagner sempre batia: fazer um retrato dos militantes como pessoas que têm parte de sua vida como uma vida normal, que namoram, que bebem, que têm seus momentos de alegria, seus momento de profunda tristeza e, de repente, estão num limite em que a vida deles está absolutamente em jogo, e eles estão dispostos a abrir mão de tudo aquilo para fazer valer suas convicções, para buscar justiça social, por acreditar num país mais justo, com direitos iguais. Isso é a luta de meu pai, foi a luta do meu pai, foi a luta da minha tia.”
Ele segue:
“O filme na verdade é um retrato de pessoas que resolveram tomar uma postura radical, uma postura diferente, para botar este país num rumo melhor. Ele fala de lutas que estão aí até hoje, acho que no fundo só traz à tona essas discussões todas. Acho que ver um filme no qual a gente está contando a história dessa figura com certas tintas que a gente acha importante –seja o fato de a gente ter um Marighella mais negro ou seja o fato de a gente estar mostrando as mentiras da ditadura e outras inúmeras barbaridades, vejo com vários paralelos [com hoje] e acho que ver o filme ajuda a discutir, ajuda a esclarecer. Espero que realmente tenha um eco positivo.”
Salgado lembra alguns momentos difíceis ao longo das filmagens, mas fala também de grandes realizações, como a cena de abertura do filme:
“Uma coisa que eu nunca tinha feito no cinema e para mim foi incrível a decisão do Wagner de fazer: a cena que abre o filme é o assalto ao trem, que dura sete ou oito minutos, e é tudo feito num plano sequência, sem corte. Tem desde a rendição deles até o momento em que eles param o trem, descem. Aquilo tinha para mim um lado muito instigante no sentido de tentar atingir, de uma certa forma, o tempo real dessas ações. No cinema, a gente costuma fazer parte por parte. Você se propor a fazer um assalto a um trem, inteiro, sem cortar a câmera, exigia uma precisão de coisas –coisas que a gente controla manualmente até coisas como um trem, que era preciso dizer para eles quantos postes antes eles precisam começar a parar o trem para chegar numa velocidade em que possa fazer os atores descerem do trem. Para mim, pessoalmente, a cena do trem foi o maior desafio como parte técnica.”
Não faltaram desafios, provocações, ameaças ao longo das filmagens. Nada que que chegasse a interferir nos trabalhos:
“Uma das vezes a gente estava numa locação, ensaiando. Não era dia de filmagem, era na preparação. A gente leva os atores para a locação e passava a situação toda, as falas principais, marcava o que acontecia de ação, onde acontecia, quem atirava, onde tombava, onde se escondia. Numa dessas situações, passou uma pessoa que identificou o filme e deu uma esbravejada, disse que estavam gritando com ele na rua… Disse que ia fazer um movimento para não filmarem aqui na frente do prédio, mas foi isso. No dia a dia do set, teve uns dois ou três dias que teve um boato que ia ter coisa, mas a quantidade de pessoas que apareciam era muito menor que o número de pessoas que havia no set, então não nos assustavam.”
Ao contrário, por todas as tentativas de obstrução ao filme, pelas manobras para censurar “Marighella”, parece que o filme é que assusta alguns. O que leva Salgado a uma posição de esperança sobre os dias de hoje, pelo menos na sua área de trabalho:
“Sinto como um momento otimista. O filme mostra que pode ser diferente, que tem pessoas que pensavam diferente, num momento em que está muito clara toda a cagada e a destruição feita por esse governo. Agora é um período de reconstrução. Tirando esse governo, temos de evoluir, mas acho que as sementes da retomada estão todas aí. Essa geração que está aí é de pessoas empenhadas em seu cotidiano em trazer coisas que foram discutidas no cinema brasileiro desde o período do cinema novo. Estão com sangue nos olhos para continuar valendo essa nossa luta.”
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