Aurélio e Conceição militam juntos no movimento popular há mais de cinquenta anos –eles se conheceram em 1967 e se casaram quatro anos depois. Os dois participaram da construção e da direção de uma das mais importantes mobilizações do povo da periferia durante a ditadura militar, o Movimento do Custo de Vida, que mais tarde se chamou Movimento Contra a Carestia.
Há quarenta anos, no dia 27 de agosto de 1978, ocorreu o momento culminante da ação, depois de meses e meses de “trabalho formiguinha”, de coleta de assinaturas para a apresentação de um abaixo assinado com quase 1,3 milhão de apoios no Brasil todo: o grande ato do Movimento do Custo de Vida na praça da Sé, que levou às ruas cerca de 20 mil pessoas.
Para lembrar aquele episódio, TUTAMÉIA ouviu o ex-deputado federal Aurélio Peres e sua esposa, Conceição. Os dois destacaram que tudo começou graças à ação da igreja católica, que tinha recentemente, a partir das decisões do Concílio Vaticano Segundo, dado uma guinada em direção aos pobres, à conscientização popular.
“As coisas não acontecem por acaso. Não tem como não citar a igreja, a Renovação Conciliar, a origem de tudo é o Concilio Vaticano Segundo. Na zona sul de São Paulo, começamos a dar cursos nas paróquias para preparar lideranças, dentro de um projeto chamado Missões Conciliares. Isso foi a origem de tudo. Os clubes de mães já existiam na igreja, no estilo tradicional, mas eles ganharam um novo impulso, eu diria, a partir do tempero, que deu sabor aos clubes de mães. Esse tempero foi a política”, afirma Peres, que está hoje com 79 anos e nos contou parte de sua trajetória política, militância sindical, prisão e tortura durante a ditadura militar(acompanhe tudo no vídeo no alto desta página).
Conceição explica com mais detalhes a transformação dos clubes de mães, criados e incentivados pela igreja:
“No começo, eram clubes de mães tradicionais, só se falava das coisas de casa. Se ensinava a fazer tricô, crochê, pintura. As madames vinham do centro para ensinar essas coisas. E a gente começou a participar, muitas mulheres, começamos a ver que aquilo não ia levar a nada. E a gente decidiu então organizar grupos de clubes de mães que fossem diferentes, em que a gente conversasse sobre política, sobre os problemas do bairro: por que as escolas têm de ser de latão, por que não se tem um posto de saúde.”
O tempero, como chama Aurélio, funcionou de fato como fermento, ampliando rapidamente a mobilização das mulheres, como conta Conceição: “Conseguimos mais de cem grupos de clubes de mãe ali naquela área da zona sul. Esses grupos de mães se animavam e prosperavam porque, ao mesmo tempo em que a gente discutia, também conseguia alguma coisa, desde trazer uma feira livre para o bairro até as escolas”.
O trabalho era organizado e coordenado, com uma direção que se reunia uma vez por mês. Seu desafio era descobrir formas de unir todos os bairros, ir além das reivindicações imediatas de cada comunidade.
Surgiu então a ideia da luta contra a custo de vida, pelo congelamento de preços. Se espalhou por tudo, e passaram a ser realizadas grandes assembleias. O primeiro grande encontro ainda foi na zona sul, no colégio Santa Maria, perto de onde tudo tinha começado. Mas, no início de 1978, houve o grande salto, a assembleia no Arquidiocesano, já bem mais próximo da região central.
“Até o colégio Santa Maria, o movimento estava ali, na sacristia”, diz Aurélio. “De repente, começa receber o apoio dos políticos, começa a receber o apoio do movimento estudantil, da oposição operaria, sindical, começa receber o apoio dos professores”.
Por isso, o trabalho do abaixo assinado “foi uma explosão”. A coleta de assinaturas, em si, era um ato de rebeldia, muitas vezes fiscalizado pela repressão, que chegou a tentar realizar prisões em alguns casos –sem resultado.
Também não conseguiu impedir a realização do ato, ainda que o governo de São Paulo tivesse convocado um encontro de sociedades de amigos de bairro para a mesma hora da manifestação na praça da Sé.
As manobras para esvaziamento continuaram com a ação da repressão policial: bloqueios foram montados em várias rodovias para impedir a passagem dos ônibus que traziam militantes do interior do Estado: houve barreiras na Castelo Branco, na Anhaguera e na Dutra.
Para culminar, a repressão cercou a praça da Sé. Apareceram com armamento pesado, cachorros e bombas de gás. Mas a multidão não desistiu. Quando já não foi mais possível ficar na praça, por causa dos ataques dos militares, entraram para a catedral, que abriu as portas para receber o povo.
À guisa de balanço de todo aquele trabalho, Aurélio Peres afirma: “O Movimento do Custo de Vida pode não ter surtido efeito objetivo [o congelamento dos preços]. Mas foi o grande ato desencadeador da luta contra a ditadura militar”.
E prossegue:
“O Movimento do Custo de Vida abriu as portas, arrebentou o trinco da porta e abriu. Foi do movimento do custo de vida que surgiram as grandes greves operárias, a luta pela anistia, a grande luta das diretas já. Se não diretamente, indiretamente, na base, o movimento do custo de vida mostrou que é possível romper a repressão da ditadura com o movimento de massa.”
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