“Ele achava que o cinema era uma ferramenta política justamente nesse sentido de permitir que as pessoas se vissem na tela e refletissem sobre os próprios problemas, as questões mais caras a elas. E não ficar simplesmente, como ele dizia, só vendo filme de capa e espada, filme de romance. Ele achava que existiam questões muito mais quentes ali no momento e que não fazia sentido, num governo soviético, estimular aquele tipo de produção, e não estimular não ficções ou filmes de agitação, que permitissem às pessoas refletir sobre a própria realidade.”

Assim pensava e agia e produzia e escrevia e discursava Dziga Viértov, uma das principais figuras da era de ouro do cinema soviético, segundo conta em entrevista ao TUTAMÉIA o também cineasta Luis Felipe Labaki. Ele é o tradutor, organizador e autor da apresentação e das notas do monumental “Cine-Olho: Manifestos, Projetos e Outros Escritos”, que reúne quase uma centena de textos de Viértov mais anexos ilustrativos, com a filmografia do documentarista e um útil glossário, além de imagens históricas.

“O que mais me fascina é a variedade de temas e de formas que o Viértov propõe”, diz Labaki na entrevista (clique no vídeo acima para acompanhar a íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV), continuando: “Ele fala de cinema não só de propaganda [política]; ele fala de publicidade, de anúncios, ele fala de animação, ele fala de cinema infanto-juvenil –uma das coisas talvez mais curiosas do livro é isso, um ciclo de projetos dele de filmes infanto-juvenis, que nunca foram feitos, que ele não conseguiu fazer, mas mostra ele pensando um tipo de cinema que a gente não associa com ele diretamente. É isso: a abrangência de temas. Ele pensou formas que, depois, foram usadas no cinema autobiográfico, no cinema etnográfico, no cinema de agitação política. E acho que isso está no livro. O que mais me diverte no livro é descobrir como, na verdade, a gente não conhecia o Viértov, que há muitos aspectos do trabalho dele que podem ser redescobertos e podem levar a discussões que vão muito além do cinema documentário.”

Para os que não conhecem o cineasta nascido na Polônia em 1896, Labaki define: “Ele é uma figura muita rica, que fez coisas muito diferentes, que nem sempre são as mais conhecidas. Tem muitos filmes famosos, mas tem muitos projetos que não conseguiu fazer, tem muitos escritos que refletem a vontade dele que nem sempre conseguiu concretizar. É um cineasta que fez parte da era de ouro do cinema soviético, um período ali de meados dos anos vinte até os anos 30. Ficou conhecido como um dos mais famosos desse período, com uma particularidade: ele trabalhou principalmente com não ficção. Ele desenvolveu todo o pensamento dele, a prática dele, pensando que deveria acontecer uma inversão de forças entre a produção de filmes de ficção e de não ficção. Ele achava que a não ficção poderia ter um papel muito maior naquela nova sociedade que estava se constituindo. Então ele se tornou um dos principais pensadores, um dos primeiros pensadores mais sistemáticos, talvez, das possíveis formas não ficcionais no cinema. Ele começou a trabalhar quando ainda nem existia, quando não se usava ainda a palavra documentário”.

O trabalho mais conhecido, mais famoso de Viértov, que morreu aos 58 anos em Moscou, na então União Soviética, é o documentário “Um Homem com Uma Câmera”: “Esse longa-metragem de 1929 é talvez o grande filme metalinguístico da história do cinema e é considerado um dos maiores filmes da história”, comenta Labaki. Lembra palavras do próprio cineasta falando sobre essa obra:

“É difícil falar sobre esse filme, porque ele tem de ser visto. Eu não quero que as pessoas traduzam em palavras, no momento em que elas estão vendo, aquilo que elas estão sentindo. Eu quero que as pessoas vejam e tirem suas próprias conclusões”.

A produção dele foi muito rica, lembra Labaki: “Fez um filme chamado “Cine-Olho”, um filme também muito famoso chamado “Três Cantos Sobre Lênin”, mas ele fez também formas menores de cinema. Fez muito cinejornal, que era visto como um produto cinematográfico menos nobre, e causou uma transformação muito grande no que se entendia como cinejornal naquela época” (CLIQUE AQUI para conhecer alguns exemplos do KINO-PRAVDA, o cinema-verdade de Viértov).

Labaki segue:

“A grande batalha do Viértov era essa, afirmar que a não ficção pode ser mais interessante, porque a gente consegue refletir melhor certos aspectos da nossa realidade. Em termos de política cultura, esse é o grande legado do Viértov: a defesa da importância da não ficção e de mostrar como a não ficção é variada. Às vezes, a gente acha que documentário é só uma coisa, e o documentário talvez seja um dos campos mais férteis do cinema, está sempre se reinventando até hoje, e acho que esse pensamento está lá no Viértov. Ele mostra para a gente como é possível ser muito inventivo e dar tratamentos muito diferentes, às vezes para o mesmo tema. Ele tem filmes que se espelham, tratam mais ou menos de coisas parecidas, mas de forma muito diferente.”

O cineasta Dziga Viértov com sua câmera em imagem de 1930 (foto Divulgação)

Diz ainda o cineasta:

“Naquela época, no Brasil, os documentários eram chamados de filmes naturais. O Viértov, então, fazia filmes naturais, mas os filmes dele não são naturalistas. Ele filma o real, mas ele não filma o real necessariamente de uma forma realista. Ele filma o real, mas ele filma também aquilo que ele quer ver projetado sobre o real, uma forma de ver [o real]. O tempo todo o Viértov está falando, nos textos dele, que o filme, na verdade, é o olhar de alguém que está ali, construindo, querendo transmitir uma certa ideia que não necessariamente vai estar clara, verbalizada.”

Concluindo:

“O grande legado dele é a gente pensar que o cinema documentário é um espaço de criação, e que você ser um criador, você ser um artista é esse laboratório ininterrupto. Ele está o tempo todo subvertendo aquilo que seria esperado do projeto dele.”