“O nosso horizonte ainda não tem luz no fim do túnel. Há novas variantes entrando em um país que não fez lockdown, que não fechou aeroportos… Se você só faz a vacinação e, ainda assim, com essa discrepância entre a primeira e segunda dose, sem controlar o fluxo de pessoas, sem controlar o isolamento de pessoas –que, neste momento, é o mais baixo que nós já tivemos–, você tem uma situação de equilíbrio instável, num patamar extremamente alto de casos e mortes. Estamos chegando a cem mil casos novos por dia, em números oficiais, e vamos passar disso. Infelizmente, a não ser que haja uma decisão política clara de afastar um governo que é o responsável por essa perda histórica, não vejo horizonte até 2022. Nesse ritmo, se nada for feito, se a vacinação não aumentar, se não houver uma redução das variantes e da taxa de infecção, nós chegaremos a um milhão de mortes em meados de 2022.”
É a avaliação feita pelo neurocientista Miguel Nicolelis em entrevista ao TUTAMÉIA no momento em que o país atingiu 500 mil mortos por causa da covid 19. Um dos maiores estudiosos da pandemia, ele aponta a responsabilidade do governo federal pela falta de comando geral no enfrentamento à doença, ao mesmo tempo em que chama Congresso e Justiça à ação.
“A pandemia derreteu as instituições brasileiras”, diz ele (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV). E prossegue: “O que faltava derreter depois do que aconteceu em 2016 o vírus veio e passou por cima. Numa democracia real, que funciona minimamente, ou o Congresso tinha tirado o cara que matou ou ajudou a condenar à morte meio milhão de brasileiros ou a Suprema Corte tinha agido para afastar por qualquer que seja a razão: criminal, insanidade. Não me interessa o motivo. Existe uma lista infindável de razões para ter outro governo no lugar desse. A CPI está mostrando que talvez existam razões criminais do código penal. É muito difícil ser otimista quando você é prisioneiro de um navio sem comando, cercado de um oceano de vírus, sem ninguém no barco que chegue e diga: deu! Não me interessa minha visão política aqui, se sou neoliberal ou de esquerda, se sou trotskista, se sou amante da Thatcher: deu! Esse país está caminhando para a ruína. Está caminhando para algo que nós nunca vimos ocorrer. Então nós vamos fazer um acordo aqui, sentar na mesa, e o impeachment vai ser feito em 48 horas. Qualquer outro país do mundo já estaria fazendo isso. De certa maneira, os Estados Unidos fizeram. Não o impeachment, mas uma eleição no momento certo para tirar aquele indivíduo”.
A política de Bolsonaro leva o país ao isolamento: “Com a queda de Trump nos Estados Unidos e com a conversão milagrosa do Boris Johnson, depois que ele quase morreu de covid, o Brasil se transformou na capital mundial do negacionismo e da incompetência na gestão dessa crise. Não é à toa que na imprensa mundial o Brasil é retratado hoje como o Grande inimigo mundial, e o nosso inominável presidente é o inimigo público número 1 no mundo”.
Leia a seguir alguns destaques da entrevista de Miguel Nicolelis.
QUADRO TRÁGICO, HECATOMBE
O Brasil não se preparou, quando teve dois meses para se preparar, sabendo que já tinha havido uma explosão na China. O Brasil manteve seu espaço aéreo aberto até quase o fim de março e, mesmo assim, não fechou para os Estados Unidos na primeira onda. Nunca criamos uma Comissão nacional, com poderes, orçamento e suporte político para combater a pandemia em âmbito nacional, para criar uma política nacional e um projeto de comunicação nacional para alertar a população do tsunami que estava vindo.
Evidentemente, o governo federal é responsável pela vasta maioria desses erros estratégicos e táticos. É um quadro trágico. O que precisava ser feito era conhecido. Os epidemiologistas brasileiros sabem disso, alertaram no começo da crise. No segundo semestre, depois da primeira onda, quando se canta vantagem e se permite que ocorram aberturas completamente aleatórias, e as eleições ocorrem, eu me lembro de que no dia 18 de dezembro eu fiz um alerta de que a segunda onda já estava explodindo no Brasil e que ela seria devastadora. No dia quatro de janeiro, os números ficaram cristalinos e ali, nos nossos modelos, já existia a previsão de três mil mortes por dia em março e uma hecatombe, a aceleração do número de mortes… Tivemos cem mil óbitos em trinta e um dias; na primeira onda, levou quatro vezes mais tempo do que isso para ter esse número. A segunda onda foi aquele tsunami que passou dos limites da praia e inundou o país todo.
A partir de então, com o colapso do sistema hospitalar brasileiro –que ainda não se reverteu, apesar de a palavra ter sumido da mídia nacional–, falta de medicamentos, falta de médicos, o cansaço, a depressão coletiva do país em lidar com uma questão que não vai embora, e a questão final a completa falta de intenção ou a omissão em criar um programa nacional de imunização, deixando de comprar, em setembro ou outro do ano passado, dezenas de milhões de doses de vacinas que estavam disponíveis a um preço muito razoável.
Com essa total incompetência, o Brasil se encontra hoje em um quadro de vacinação assim: a curva da segunda dose está achatada, está horizontal, crescendo muito pouco, e a curva da primeira dose disparou. A distância entre as duas populações está aumentando, então nós vamos ter dois países aqui no Brasil: um país das pessoas que tomaram a primeira dose e um país com muito menos gente, dez por cento da população vacinada com a primeira dose, que teve a imunização completa. Porque estão sumindo, as pessoas não estão aparecendo para a segunda dose, e o governo não está fazendo uma campanha massiva –venha tomar a segunda dose. Então não vamos atingir os 75% de imunização necessários, muito provavelmente não neste ano, para parar o crescimento dessas variantes.
500 MIL MORTES
“Parece que as pessoas não conseguiram ainda ter a dimensão do que um número desses significa. É como se um ataque nuclear de repente matasse todos os habitantes de Florianópolis. O Brasil perdeu, nesses 16 meses de pandemia, mais pessoas do que os Estados Unidos perderam durante a Segunda Guerra Mundial. Na pandemia, os Estados Unidos cruzaram a marca dos 600 mil óbitos, mas, neste momento, eles estão tendo por volta de 300 mortes por dia, ou seja, cerca de dez por cento do número de mortes diárias no Brasil. Nesse ritmo, nos próximos 60 a 90 dias, o Brasil certamente passará dos Estados Unidos e se tornará o país com maior número de óbitos no mundo, por dados oficiais”.
O pior é que o número real é ainda maior, segundo o cientista: “Há uma subnotificação, provavelmente de uns 20% –no mínimo. Mas nem estou falando disso. Estudei os números de mortes naturais, por todas as causas, nos anos anteriores à pandemia. É um número muito estável, pelo menos nos últimos anos, 2018 e 2019. São cem mil óbitos por mês, ou seja, um milhão e duzentas mil mortes por ano. No ano passado, esse número já cresceu para um milhão e quatrocentos mil óbitos. Agora, em 2021, vamos atingir um milhão de mortes provavelmente no final de julho. Ou seja, 83% das mortes que ocorrem em doze meses vão ocorrer em sete meses, sugerindo que o Brasil vai bater seu recorde histórico de mortes por todas as causas –incluindo a covid–, em dezembro deste ano. Teremos um excesso de mortes assustador.
Março e abril foram os meses mais letais da história brasileira. Várias cidades do Rio Grande do Sul e do estado de São Paulo tiveram mais óbitos do que nascimentos, tanto no acumulado do ano quanto nos meses trágicos de março e abril –tivemos 186 mil mortes em março e por volta de 185 mil óbitos em abril; ou seja, um excedente de 85% de óbitos em relação à média histórica brasileira. Com os nascimentos ficando estáveis e até caindo um pouco, tivemos o menor diferencial entre nascimentos e mortes da história do Brasil nestes primeiros seis meses. A pandemia, portanto, já tem repercussões estruturais no Brasil, demográficas, que vão ser sentidas daqui a décadas.
MAIOR CHAGA HUMANA DA HISTÓRIA
A tragédia é mais do que um número. Há dezenas de outras vidas associadas a cada vida perdida; para cada morte, há pelo menos dez pessoas afetadas diretamente, parentes diretos, amigos, colegas, companheiros. Esta é a maior chaga humana da história brasileira. É como se nós tivéssemos experimentado a maior guerra de toda a nossa história. Com exceção do genocídio indígena e da escravidão, que se espalharam por séculos, não há nada que se compare ao que estamos vivendo nestes 16 meses.
A sensação que eu tenho é que todos nós, brasileiros, somos prisioneiros em um barco à deriva, cercados por vírus, sem nenhum comandante, sem nenhum capitão comandando o barco, sem saber para onde ele se dirige, e todos nós estamos com uma espada sobre nós. Qualquer um de nós, a qualquer instante pode ser infectado, apesar de nós termos tomado talvez a primeira dose ou, alguns de nós, até mesmo a segunda dose de vacina.
UM MILHÃO DE MORTOS EM 2022
Com a entrada da variante indiana e, agora com a variante andina, que devastou o Peru nos últimos meses e já chegou ao Brasil, mais a variante amazônica, nós não sabemos… Eu não tenho a segurança que eu tinha em janeiro e março de afirmar que nós chegaríamos a esta data com 500 mil óbitos e três mil mortes por dia, é muito difícil de ter neste momento. Temos múltiplas variáveis, muitas variantes do vírus competindo entre si, temos um sistema hospitalar colapsado –temos dez mil pessoas no estado de São Paulo internadas em UTI. Infelizmente, a não ser que haja uma decisão política clara de afastar um governo que é o responsável por essa perda histórica, não vejo horizonte até 2022. Nesse ritmo, se nada for feito, se a vacinação não aumentar, se não houver uma redução das variantes e da taxa de infecção, nós chegaremos a um milhão de mortes em meados de 2022.
É uma lógica muito simples para entender que o nosso horizonte ainda não tem luz no fim do túnel. Há novas variantes entrando em um país que não fez lockdown, que não fechou aeroportos… Se você só faz a vacinação e, ainda assim, com essa discrepância entre a primeira e segunda dose, sem controlar o fluxo de pessoas, sem controlar o isolamento de pessoas –que, neste momento, é o mais baixo que nós já tivemos–, você tem uma situação de equilíbrio instável, num patamar extremamente alto de casos e mortes. Estamos chegando a cem mil casos novos por dia, em números oficiais, e vamos passar disso.
FUTEBOL
Lembro que um estudo da USP, divulgado meses atrás, quando o futebol voltou ao Brasil, demonstrando que o nível de infecção entre os jogadores de futebol era idêntico ao entre os profissionais de saúde atuando nas frentes de combate à covid: mais de 11,5%! É a maior do mundo entre os jogadores de futebol. É estuporante porque os médicos e enfermeiros que estão lá na trincheira estão em meio a uma carga viral gigantesca.
É impressionante. Não interessa a variável estudada, o Brasil é campeão da incompetência. Número de grávidas mortas, campeão. Número de bebês recém-nascidos mortos, campeão, índice de lotação de UTIs pediátricas, Brasil campeão do mundo. E agora nós vamos ter provavelmente um tsunami de casos crônicos.
DEMÊNCIA PÓS-COVID
O governo, no começo, gostava de usar o número de recuperados, não sei quantos milhões…. Pois bem, entre 23% e 25% desses recuperados vão ter sequelas crônicas, como mostrou estudo publicado na semana passada nos New York Times. Foram analisados dois milhões de casos de pessoas recuperadas; 23% tinham sequelas graves crônicas, inclusive pacientes que nem souberam que tiveram covid, porque foram assintomáticos e nem foram testados.
Eu falo isso há meses: esse é um vírus para não ter. Não é que você não quer ter um caso grave; você não quer ter nenhum caso, não quer ter nenhum tipo de contato com esse vírus, porque ninguém consegue prever a dinâmica desse vírus uma vez que ele penetra em cada um de nós. Você pode ser assintomático durante meses e, de repente, aparecer com uma encefalite pós-covid.
Conversei com os neurologistas e neurocirurgiões da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) que me relataram toda a sorte de absurdos que eu nunca imaginei um vírus respiratório fazer, inclusive casos de demência pós-covid. Literalmente, destruição de tecido cortical pós-covid. E não é por derrame, não é por AVC; é por uma lesão de que ainda eles não têm ideia do que é.
Há efeitos crônicos, neurológicos, que eles estão descrevendo. Inclusive as infecções oportunistas, que também estamos tendo no Brasil. São duas: a mucomicose, vulgarmente conhecida como fungo negro, e a candidíase auris, em que a mortalidade é de 80%. Há casos de imunossupressão relacionados à infecção pelo coronavírus, e infecções oportunistas.
INIMIGO COLETIVO
Quando a política bate de frente com a biologia, a biologia ganha de goleada. Estamos combatendo um organismo coletivo. Quando você olha para uma partícula viral, você não consegue entender o que é aquilo. Ele só existe quando ele tem uma massa crítica de partículas virais que consegue infectar um número de hospedeiros grande, e a dinâmica explode. O vírus ataca como um exército coletivo. Se você tentar combater um organismo coletivo com esse grau de letalidade de uma maneira individual, pode esquecer. Não tem a menor chance. Para combater um inimigo coletivo, você tem que ter uma defesa coletiva. Você tem que ter uma estratégia que não é nem regional nem nacional, é global.
GUERRA DE SOBREVIVÊNCIA
É por isso que eu não me conformo com o grau de normalização que ocorreu nessa pandemia no Brasil. Qualquer país do mundo que perdesse meio milhão de pessoas em um prazo tão rápido, a consternação… Não haveria regime que sobrevivesse a um negócio desses. O Trump não sobreviveu. Não conseguiu se reeleger, o que é muito raro nos Estados Unidos. E veja como mudou da água para o vinho quando o novo presidente entrou.
Nossa esperança é que a gente consiga sensibilizar boa parte da sociedade de que essa é uma guerra de sobrevivência. É a maior guerra de sobrevivência da história do Brasil. E você só ganha uma guerra de sobrevivência se você tiver tenacidade, se usar isso aqui que fica entre as orelhas (aponta para a cabeça) e você tiver empatia humana para com o próximo e lutar contra o inimigo de uma maneira comunitária e coletiva.
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