“Temos que fechar o Brasil cidade por cidade. Se as autoridades não vão fazer, as pessoas que querem salvar as suas comunidades locais têm que começar a se organizar em grupos comunitários de pressão para fazer o que tem de ser feito. Usar máscara tinha que ter uma lei nacional de obrigatoriedade. Máscaras tinham de ser distribuídas para a população gratuitamente. Ter normas de circulação, parar de ir para o litoral. A sociedade civil tem que começar um movimento de baixo para cima e se organizar e começar a fechar o Brasil cidade por cidade. Porque pelo visto os gestores não têm a devida coragem de enfrentar os lobbies que sustentam o poder político no Brasil, em detrimento da prioridade, que é salvar vidas.”
A convocação é do cientista Miguel Nicolelis, professor catedrático de neurobiologia da Universidade de Duke (EUA) e um dos maiores estudiosos da pandemia no Brasil. Em entrevista ao TUTAMÉIA, ele traça um quadro da situação geral e aponta caminhos para o enfrentamento do que considera “o maior crime contra o povo brasileiro”, que faz o país caminhar para “um abismo sem fundo”.
“O quadro atual é trágico e vai pior muito”, diz ele (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV). “O Brasil está completamente dominado pelo vírus. Nós estamos com uma semana de reservas de medicamentos que são simples, mas são medicamento de urgência, para intubação, analgésicos, anestésicos, relaxante muscular, heparina, enfim, coisas básicas, que o governo federal deixou de comprar, como deixou de comprar tudo o que precisava. O resumo da ópera é: a situação é crítica. Nós somos um reator nuclear fora de controle, e infelizmente a reação em cadeia tende a piorar. Com o colapso hospitalar, já estamos vendo os sinais –apareceram em Porto Alegre, por exemplo—do colapso funerário. E em seguida a um colapso funerário, você tem um colapso social e econômico, que eventualmente desencadeia uma crise política. Essa é a cadeia de eventos que infelizmente o Brasil está seguindo como se fosse um livro-texto, capítulo a capítulo.”
As complicações decorrentes da pandemia desgovernada são enormes: “Quando se tem um colapso hospitalar nacional, o número de mortes começa a crescer exponencialmente porque não há para onde levar as pessoas. As pessoas começam a morrer em casa, nas ambulâncias, na porta dos hospitais, sentadas nos pronto socorros porque não tem maca, não tem oxigênio. Isso é uma crônica anunciada, infelizmente”.
As perspectivas não têm nada de animador: “Estamos caminhando para o inverno, quando classicamente no Brasil, uma série de outras doenças respiratórias tem o seu pico, como a influenza. Temos outros vírus endêmicos graves no Brasil –dengue, chicungunha… E vamos chegar a esse inverno com um sistema hospitalar colapsado, sem medicamentos, sem médicos, sem enfermeiros, sem profissionais de saúde –ou com a vasta maioria deles esgotada–, tendo uma confluência de outras viroses, outros casos”.
Nicolelis traz à luz ainda outros dramas, obscurecidos pela torrente de mortes diárias: “Estamos tendo uma epidemia de partos prematuros. O Brasil já é o recordista mundial em casos em gestantes. E as gestantes estão tendo episódios trombóticos de placenta –porque o vírus gera tromboses em várias partes do corpo—e aí o organismo induz o parto prematuro. Há bebês nascendo com 23 e 24 semanas que ou, infelizmente, perecem, porque não aguentam, ou vão para uma UTI. E a gente está vendo o fenômeno de as UTIs neonatais brasileiras ficarem cheias. Brasília aumentou dramaticamente nos últimos quarenta dias, santa Catarina, outros estados estão apresentando isso. No Rio Grande do Norte, um colega me contou, está faltando anticoagulante para atender as gestantes que estão com risco de trombose… Então há casos de mães que, na hora do parto, cesariana ou prematuro, também têm de ir para a UTI. As UTIs obstétricas, que já não são muitas, estão sendo ocupadas com as UTIs neonatais. Outra coisa: a gente não tem a menor ideia dos efeitos a longo prazo em bebês, do vírus. A gente não sabe se essas crianças vão ter lesões neurológicas, lesões cardíacas, respiratórias, enfim, é um enredo trágico dentro da hecatombe”.
Não se trata de obra do acaso, diz ele, apontando uma série de erros do governo: “O principal erro estratégico crasso do manejo da pandemia no Brasil foi a falta de uma mensagem verdadeira, direta, objetiva, transparente, contínua, do governo federal brasileiro –e mesmo dos gestores estaduais, que sempre quiseram dourar a pílula. As pessoas iam para a televisão anunciar que a coisa estava acabando quando a coisa tinha mal começado”.
Lembra estudos da comunidade científica que indicam que, se o Brasil tivesse seguido as orientações da Organização Mundial da Saúde e das instituições médicas e científicas brasileiras, quatro de cada cinco portes por covid poderiam ter sido evitadas. “O processo de decisão política no país é uma catástrofe. O lero-lero político está sempre por cima. O maior responsável é o governo federal. Não teve gente com culhão para decretar um lockdown nacional e fazer o que tinha de ser feito.”
Ao contrário, o presidente da República, no entender do cientista, sabota o enfrentamento à crise humanitária. Comentando iniciativa de Jair Bolsonaro de contestar no STF ações de governos estaduais de combate à pandemia, Nicolelis afirma: “É uma peça autoincriminatória, a confissão pública de um presidente que admite ter renunciado à sua responsabilidade constitucional de defender o povo brasileiro de uma invasão, porque é uma guerra biológica a que estamos enfrentando”.
De fato, os números desenham um cenário de guerra. Nesta segunda-feira, 22 de março, quando foi feita a entrevista, a contabilidade oficial do Conselho Nacional de Secretários da Saúde dava conta de 294.042 mortes, com 11.998.233 casos –dados muito aquém da realidade, segundo afirma o cientista, considerado um dos mais influentes do mundo. Para ele, o número real de casos pode ser de quatro a cinco vezes maior, e o de mortes, o dobro.
Mesmo assim, Nicolelis afirma que é possível estancar a sangria: “Vai piorar muito se não fecharmos o país imediatamente, restringirmos o fluxo através da malha aeroviária e rodoviária, aumentarmos a vacinação dez vezes e criarmos uma coordenação de salvação nacional que contorna o Ministério da Saúde, com poder conferido pelo Supremo que permita uma tutela judicial do Ministério da Saúde”.
Ele explica: “O STF tem condição jurídica de dizer que o Ministério da Saúde não respondeu à pandemia à altura do que era preciso, e que é preciso uma tutela judicial. Eles têm uma opção histórica de ajudar a salvar o povo brasileiro ou ficar do outro lado. Do lado do vírus. Nesse momento não tem muro, não tem meio termo”. Sem ação, este é o cenário antevisto: “Em março de 2022, 1 milhão de vítimas, um país destroçado, sem hospitais”.
Nicolelis faz um alerta às autoridades, que é também uma conclamação à ação em defesa do país e da população: “O povo brasileiro não pode ser obrigado a escolher entre morrer de fome ou morrer de vírus. Essa escolha não é justa, não é humana e não é aceitável. Se as autoridades devidamente eleitas, constitucionalmente responsáveis por zelar pela segurança, pela saúde do povo brasileiro não responderem, a sociedade civil tem que se organizar, demandar e agir pelas suas próprias ações legais e corretas sanitárias.”
O caminho, propõe, é “induzir de todas as formas o bloqueio de aglomerações e o fluxo humano e demandar das autoridades brasileiras a compra e a distribuição das vacinas necessárias e de todos os insumos necessários para que os hospitais brasileiros possam cuidar daqueles que precisam de auxílio emergencial grave”.
“A sociedade brasileira tem que sair dessa inércia, dessa anomia, e demandar seus direitos fundamentais daqueles que foram eleitos para cumprir esses direitos. Se um poder da República renunciou a essa obrigação constitucional, existem outros poderes que têm de assumir essas responsabilidades, sob pena de, se não o fizerem, serem reconhecidos para o resto da história como cúmplices dessa falta de gestão, dessa renegação dos direitos fundamentais do brasileiro e desse projeto de basicamente omissão de socorro a nível nacional.”
“A opção é muito clara. Ou você está do lado do povo brasileiro para defender a vida dos brasileiros ou você é cúmplice do que acontece no Brasil. Acredito que existem no Brasil pessoas nos poderes constituídos que vão entender essa mensagem e vão tomar as decisões imediatas. É para ontem. Do jeito que está, o Brasil caminha para um abismo sem fundo.”
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