“Ir à praça da Sé no dia 27 de agosto de 1978 foi uma decisão de coragem, de cidadania e de risco. Havia muito medo, as pessoas eram ameaçadas o tempo todo: vai ter bomba, vai ter cavalaria, vocês vão ser presos. Mesmo com essas ameaças, as pessoas resolveram ir”, conta Irma Passoni, relebrando a grande manifestação do Movimento do Custo de Vida realizada há quarenta anos na praça da Sé.
Uma das organizadoras do evento, ativista que participou da criação do MCC, Irma Passoni conversou com TUTAMÉIA no dia exato do quadragésimo aniversário do ato público, uma das mais grandiosas manifestações de massa realizadas no pós-68, marcando a luta do povo brasileiro pela retomada das praças públicas (acompanhe a entrevista na íntegra no vídeo acima).
“Nos chamavam de comunistas, mas nós respondíamos que não dava para continuar daquele jeito: O salário não dá, emprego não tem, e nós queremos que o governo faça alguma coisa.”
O governo não fazia, não ouvia a população da periferia. Então a população fez.
“A assembleia na praça da Sé, com a presença de vinte mil pessoas ou mais, foi resultado de uma caminhada que começa bem simples, com a coleta de assinaturas para o abaixo assinado. Ela vai indo pelas ruas, nos bairros, vai para as praças públicas –essa coisa de a praça é nossa, estar na praça, abordando qualquer cidadão, conhecido ou não… até chegarmos a essas assembleias maiores, com a realizada no colégio Santa Maria, com cinco mil pessoas. Na zona leste, a igreja matriz de São Miguel também foi palco de grandes assembleias.”
A igreja, por certo, está na gênese do movimento, que foi baseado no trabalho das comunidades eclesiais de base atuando ao lado dos clubes de mães da periferia.
“Sou militante da igreja católica. Naquela época, no início dos anos 1970, tivemos muito apoio do cardeal Arns (Dom Paulo), que nos deu muito apoio para a construção das comunidades de base, que discutiam um pouco a parte bíblica e a realidade de vida das pessoas.”
Com a orientação de dom Paulo e os ensinamento e desafios colocados pelo Concílio Vaticano Segundo, a igreja começava a mudar, especialmente no trabalho realizado nas periferias, conforme diz Passoni:
“A Igreja sempre dizia para cuidar da alma, a vida eterna é depois. Nós entendíamos que não, que as mensagens bíblicas e as mensagens do Vaticano nos desafiavam a fazer mudanças aqui e agora. A salvação de agora, conseguindo ônibus, conseguindo escolas, conseguindo moradia, é aí que a gente ia se salvando, na verdade.”
Nos clubes de mães, a política era discutida com base na vida de cada uma: “Nas reuniões de quinta-feira, as primeiras duas horas era bordar, costurar, dar orientação sobre educação dos filhos. Depois discutíamos os problemas.
Assim surgiu a decisão de lançar o primeiro manifesto, em 1973, assinado pelas “mães da periferia (veja abaixo cópia de documento arquivado no CPV (Fundo ECO_PRE) e CEDEM, da Unesp -no Fundo Clube de Mães da Zona Sul).
Passoni conta: “As mulheres decidiram escrever uma carta pro governo para dizer o que estávamos passando. Que a gente não estava aguentando. Tem muito desemprego, o custo de vida sobre pelo elevador, e o salário vai pela escada”.
A primeira versão da carta partiu de um grupo coordenado por Ana Dias, viúva de Santo Dias, o operário assassinado anos mais tarde em uma greve na zona sul de São Paulo (na entrevista, Irma Passoni fala bastante sobre o trabalho desse mártir do movimento popular brasileiro).
O texto foi discutido com Passoni, devolvido aos clubes de mãe, rediscutido e modificado até ganhar sua versão final.
O debate era uma marca do movimento e também foi a base para a definição do texto do abaixo-assinado que colheu quase 1,3 milhão de apoios em todo o país (confira abaixo cóipa do texto original).
A organização e mobilização do povo da periferia resultou no grande ato da praça da Sé, na chegada ao Planalto para entregar ao governo do general de plantão as pilhas e pilhas de páginas com nomes de brasileiros condenando o governo e exigindo respeito aos seus direitos.
Coisa que parece mais frágil hoje em dia e que nos fez perguntar a Irma Passoni se a experiência do Movimento do Custo de Vida tinha sido em vão, perdida ao longo do tempo.
“As pessoas que tiveram contato ou participaram desse movimento se tornaram outras pessoas. Para onde as pessoas foram, elas levaram essa postura. Marcou profundamente o âmago de todo cidadão e cidadã que participou”, diz Passoni.
Houve consequências sociais também: “O movimento foi florescendo no Brasil inteiro, e não dá para calcular até onde chegou porque cada lugar teve sua própria característica. Teve movimento de todo o lado, de todos os temas. Cada entidade ou cada região começou a acreditar que seu problema também poderia ser resolvido. Então começaram a fazer abaixo assinado e mobilização para tudo quanto era coisa. O que se conquistou não dá para calcular. Só sei que houve muita conquista de escolas, houve muita conquista para habitação popular, houve um movimento muito importante na área da saúde”.
Os desdobramentos também foram políticos: “Se vivemos essa democracia, ele foi dura para conquistar. Esses movimentos construíram a pauta das questões da Constituinte. Foi um salto de cidadania que as pessoas deram, e isso não morreu mais.”
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