Ele gosta de remar no lago de Brasília. Numa noite se deixa levar por recordações, adormece, e o bote vai parar na margem proibida. O tranco é uma das interdições que enfrenta o protagonista de “A Noite da Espera”. Nesse novo romance de Milton Hatoum, o pano de fundo é a escalada repressiva da ditadura no Brasil a partir do final dos anos 1960.
Martim, um estudante, encara a separação dos pais, a mudança de cidade e a convulsão social. Encontra amigos, militantes, gente rica e o pessoal pobre da periferia brasiliense. Atordoado com a distância enigmática da mãe e com a áspera presença do pai, ele busca construir o seu caminho. Descobre livros, teatro, cinema, sexo. Atônito, vê o avanço tenebroso do regime militar, que estraçalha as experiências culturais, impondo medo e tortura.
Martim, dez anos depois, está em Paris. É lá que ele reúne sua papelada, fotos, cartas, diários, anotações em guardanapos _”palavras ébrias num tempo salteado”. O livro pula de Brasília para Paris e vai e volta. Alguns textos são curtos, outros mais longos, num ritmo que não cede à crueza do cotidiano. A angústia do protagonista com a sua vida pessoal e com a do país cresce com os obstáculos que vão surgindo.
Martim vai amadurecendo, ficando independente. Aproxima-se um grupo de teatro que trabalha na encenação de “Prometeu” (logo essa peça!). O brutal fechamento político traz a censura e tenta sufocar a criação coletiva. A repressão feroz invade a universidade e o protagonista sente as dores da vida sob a ditadura.
“Num dos cadernos de 1971 há poucas frases, poemas em farrapos, inacabados: a escrita refém da depressão que me paralisou”.
Hatoum já disse que começou a escrever o livro (o primeiro da trilogia “O Lugar Mais Sombrio”) anos atrás, muito anos antes do golpe atual, que destrói o país e abre as portas para um retrocesso inaudito. No entanto, seu texto não poderia ser mais contemporâneo. Nele, reflexões e tensões de hoje ecoam sobre o passado tenebroso onde navegam Martim, seus companheiros e sua família. Como no golpe militar, hoje a angústia e a depressão paralisam uma boa da sociedade, que, apesar de tudo, resiste _como no mito grego da peça.
Nascido em Manaus em 1952, Hatoum (“Dois Irmãos”), se mudou para a capital federal em 1967. Em “A Noite da Espera” (Companhia das Letras, 237 páginas), seu personagem perambula pela recém-nascida capital federal e nos mostra uma cidade marcada pela segregação social e pela pobreza gerada na sua periferia. De longe, observa conchavos, negociatas, fugas forçadas e a engrenagem da especulação imobiliária. O contexto é de um país dividido, estraçalhado, deprimido, um redemoinho que deixa cicatrizes no jovem personagem.
Anos mais tarde, em Paris, o protagonista escreve:
“Cidade gelada, nem sempre silenciosa: algazarra de turistas na travessia de uma ponte sobre o Sena. Somos do mesmo país, andamos para margens opostas. Essas gargalhadas e vozes são verdadeiras?”
Precisa dizer mais? Eu peguei o livro para ler no sábado e terminei no domingo. Não consegui parar. Foi uma leitura voraz. Vá ler!
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