Especialista em segurança pública, o antropólogo Luiz Eduardo Soares faz um alerta sobre as consequências das políticas defendidas por Jair Bolsonaro:

“Não tenho dúvidas de que, se acontecer um desastre histórico imenso, uma tragédia, e a candidatura fascista passar –o que eu espero que não aconteça–, no dia seguinte, não vai ser nem necessário esperar a posse, no dia seguinte nós vamos ver banhos de sangue nas periferias e nas favelas. Porque isso vai ser percebido como uma grande autorização para que se transforme em ato essa disposição para a violência.”

Violência que é incentivada, liberada, autorizada pelo próprio candidato, segundo Soares diz ao TUTAMÉIA (veja a entrevista no vídeo acima):

“Para além das palavras e dos gestos explícitos do candidato que representa o fascismo e a ultradireita, além do que é visível nessa candidatura, há uma dimensão intangível da maior importância, e nessa dimensão, que nós não percebemos imediatamente, está uma autorização para a violência. A violência está autorizada. Não é preciso que o personagem, que o candidato do fascismo diga. A sua existência enquanto trajetória, a sua forma de ser e tudo aquilo que dele provém, como orientações tácitas, tudo aponta para a violência, a brutalidade, o desrespeito ao outro, a negação do outro e da diversidade.”

Cientista político e escritor, coautor do livro “Elite da Tropa”, que foi base para o filme “Tropa de Elite, Soares diz que esse posicionamento do candidato Bolsonaro é responsável, abre espaço para atos de violência política que têm se registrado nos últimos dias, sendo o mais grave o assassinato do mestre capoeirista Moa do Katendê, na Bahia, morto a facadas por uma bolsonarista depois de ter dito que votava no PT.

“Ele tem toda a responsabilidade, sim, assim como têm responsabilidade os segmentos sociais que o apoiaram, mas ele tem a principal cota de responsabilidade. É como se ele tivesse despertado os monstros para que eles saíssem do armário despudoramente e nos ameaçasse. O monstro que há dentro das pessoas, esse monstro sombrio que deseja vingança, o exercício da brutalidade como forma de confrontar tudo o que é mal. E tudo o que é mal está sintetizado no outro, que pode ser o PT. O antipetismo incrementado, exacerbado, tóxico passa a ser a referência.”

A política, a ação, a campanha desenvolvida acaba tendo eco exatamente em parte da população que poderá ser vítima da violência do Estado:

“As pessoas mais pobres estão se sentido inseguras com o desemprego, com a perda dos direitos. Sentem um ressentimento muito grande, pois suas expectativas tinham um extraordinário horizonte há pouco tempo e tudo isso entrou em colapso, então a expressão dessa incerteza, a sensação de desordem que as pessoas têm é uma coisa muito mais ampla do que aquela que se refere especificamente à criminalidade, à segurança pública. Essa incerteza é que forma o sentimento de medo e o sentimento maior de insegurança. A percepção que se tem é da desordem, e essa desordem clama por uma ordem autoritária, que será afirmada. E aqueles que são seus vigilantes, seus justiceiros, se sentem instados a afirmar essa nacionalidade viril, que lembra o fascismo, o nazismo.”

E segue: “Os que se conectam a esse ódio terrível, que é o ódio gerado pela insegurança e pela incerteza, que é uma busca imaginária de ordem, esses se convertem em guerreiros desse exército sem pátria, sem horizonte, sem utopia, sem orientação, sem norte, sem valor”.

Soares também buscou analisar as propostas de Bolsonaro na área de segurança. Seu veredito: “Na área da segurança pública, tudo o que está no programa é de uma pobreza, de uma precariedade, de uma insuficiência, de uma irracionalidade. Parece um exercício de um ginasiano que faz um trabalho para mostrar para a professora e inclui uns gráficos para mostrar que é científico. São barbaridades que estão ditas ali.”

Na entrevista ao TUTAMÉIA, o especialista em segurança pública ele especificou algumas das “barbaridades”, que apresentamos a seguir.

LIBERAÇÃO DO ACESSO A ARMAS

Eles dirão que há controle, no sentido de que a pessoa tem de apresentar algumas credenciais mínimas, mas nós sabemos o que isso significa, é a liberação do acesso às armas. Sabemos que mais armas implicam mais mortes. É assim no mundo inteiro, é um consenso na comunidade científica internacional. Não há como sustentar que mais armas sirvam à segurança.

A grande maioria dos países democráticos caminha ou no sentido do desarmamento pleno, como é o caso do Japão e da Grã-Bretanha, ou para sua limitação, para sua restrição. E nós estamos falando de países onde morrem no máximo algumas dezenas de pessoas assassinadas. No Brasil, nós tivemos no ano passado 63.880 homicídios dolosos, um recorde mundial!!!

Quando há armas em casa, há mais suicídios, feminicídios, há mais violência doméstica com danos intensos.

Além disso, armar o cidadão, de certa forma, é eximir o estado de suas responsabilidades na área de segurança. A mensagem é Virem-se, agora é com vocês. Nem o mais extremo liberal foi capaz de propor que o estado abdicasse de suas responsabilidades na segurança pública. A segurança pública é a própria razão de ser do Estado, que monopoliza a violência.

Quando o cidadão está armado, ele não sendo profissional, não está preparado para enfrentar um assalto. O assalto depende da surpresa e, se a pessoa é pega de surpresa, o que o pode acontecer é aumento do grau de violência do criminoso. Transformará o assalto em latrocínio. E a arma será roubada.

Arma em casa, se estiver muito escondida, não tem função, pois dificilmente será usada em defesa. Se não estiver muito escondida, pode ser objeto de curiosidade de criança, que acontece muito, vão brincar e a arma dispara. Ou, num momento de descontrole, numa disputa passional, o homem pode matar a mulher: a violência doméstica é uma praga; se nos armarmos essa praga ela se multiplicará. Não podemos municiar o feminicídio.

SUPRESSÃO DE CONTROLES DA POLÍCIA

Outro ponto do programa de Bolsonaro é a suspensão dos controles do comportamento policial, lá na ponta, a chamada exceção de ilicitude ou supressão de ilicitude, é uma cláusula militar, um tipo de valor e norma que se aplica em guerras. Quem matar seu inimigo em uma guerra está protegido de qualquer acusação, de qualquer processo.

No caso da segurança pública, não se trata da destruição de parte da sociedade brasileira, da liquidação. O que se deve fazer é investigação, prisão, julgamento de suspeitos. Quando há resistência armada desses suspeitos, a nossa Constituição já autoriza, de acordo com todos os códigos, a legítima defesa por parte do policial –como qualquer um de nós. Ele pode e deve agir na legítima defesa de terceiros também.

A polícia é uma instituição que aplica a força de modo calibrado. Recorre ao uso comedido da força, a força se faz na medida da necessidade em cada caso específico. Só num caso extremo a letalidade é autorizada no mundo democrático.

Isso já está estabelecido. O que está na proposta do candidato fascista é a exclusão de ilicitude. Esse tipo de determinação bélica suprime qualquer controle e autoriza a morte do outro.

Incentiva a brutalidade policial excessiva, que funcionam como liquidações extrajudiciais. Só no Rio de Janeiro, de 2003 a 2017 ocorreram 13.387 mortes provocadas por ações policias. No Brasil, em 2016, houve 4.222. São muito, muito numerosos.

Os números aludidos no programa do candidato da ultradireita são equivocados e extremamente manipulados. Os números relativos à letalidade policial são altíssimos, elevadíssimos hoje, sem essa exclusão da ilicitude.

Isso é mais do que uma consideração técnica. Isso é uma autorização, é uma mensagem muito clara: é para matar! Sintam-se à vontade, com plena liberdade para matar.

TRÁFICO DE ARMAS E DEGRADAÇÃO DA POLÍCIA

Isso vai provocar incremento do tráfico de armas. Porque o outro lado vai perceber que vai ter de enfrentar uma violência em nível mais elevado, portanto vai se lançar em busca de armas ainda mais poderosas. Nós vamos ter um ciclo devastador.

Isso conduz à degradação da instituição policial, ao aumento da insegurança pública. Por que, quando se dá ao policial na ponta liberdade para matar, dá-se também, indiretamente, a liberdade para não fazer a execução. E isso passa a ser objeto de negociação, caso a caso, nas vielas, nos becos, nas periferias, nos cantos de cada cidade.

Os segmentos que já se corromperam na força policial tendem a se fortalecer. Sempre que há política desse tipo, esse comércio da vida prospera, é incrementado.

Chega-se à situação que existe hoje no Rio, o arreglo, o acordo entre grupos de policiais corrompidos e criminosos, traficantes, milícias –ou ambos, pois a milícias já fazem tráfico de drogas. Ao invés daquele acordo no varejo, se estabelece esse acordão em que se privatiza os lucros e terceiriza os custos e os riscos: a polícia se apropria de parte dos lucros do tráfico, não precisa entrar em conflito nem correr riscos.

Foi isso que destruiu a polícia no Rio de Janeiro. Ela se liquefaz porque não há uma instituição contra o crime se a instituição é sócia do crime. Não estou dizendo que a instituição policial seja socia do crime na sua totalidade, mas há segmentos muito numerosos que são sócios do crime.

Essa é a política que já está em curso. Não dá para entender como a intensificação dessa política, que já fracassou, produza resultados distintos.

AUMENTO DO NÚMERO DE PRISÕES

Outro elemento que revela a absoluta ignorância da segurança pública por essa gente é uma saudação aos estados que mais prenderam.

Afirma que o Brasil prenderá muito mais.

Quem é que está sendo preso? Dos 63.880 homicídios dolosos do ano passado, que são os crimes contra a vida, os crimes mais graves, a taxa de esclarecimento, de investigação, é muito baixa. Gira em torno de 8%. Temos de fato uma impunidade muito grande em relação aos crimes contra a vida. E nós toleramos isso como nação porque os que pagam com a vida essa insensatez coletiva são sobretudo os negros, os pobres, os moradores de territórios vulneráveis. Talvez por isso seja naturaliza esse escândalo, que é exorbitante.

O que acontece é que os que o sistema não prende os homicidas. Temos lá 13,7% de assassinos num universo de 726 mil presos, que é a terceira maior população carcerário do mundo (dados de 2016). Só 13,7% cumprem pena por homicídio, e os homicídios não são praticamente investigados.

A população carcerária cresceu de 190 mil em 1990 para 212 mil em 2001, e agora 726 mil. É a população carcerária que mais cresce no mundo.

O subgrupo que mais cresce é aquele formado pelos transgressores das leis sobre drogas. Como no Brasil se está prendendo em flagrante delito, mais de 80% são em flagrante delito, nós não estamos tendo investigação.

SOLDADOS PARA O CRIME

O problema é que só alguns crimes são passíveis de prisão em flagrante delito. Não os mais importantes, que envolvem investigação, como o de crime organizado, lavagem de dinheiro. Portanto é um crivo seletivo na aplicação da lei, e a prioridade passam a ser aqueles passíveis de flagrante.

Com isso enchem as prisões de pequenos varejistas da área de crimes de drogas, que foram presos sem armas, sem ação violenta e sem vínculo percebido com organização criminosas, porque não há investigação.

Esse vão ficar pelo menos cinco anos em regime fechado e, para sobreviver no sistema prisional, vão ter de se aliar a alguma facção criminosa, a qual prestarão contas e serviços depois de saírem na prisão.

Estamos contratando violência futura. Estamos recrutando força de trabalho para o crime, estamos fortalecendo as facções criminosas e destruindo vidas que poderiam ser recuperadas. E pagando muito por isso, R$ 2.500 por mês. Esse dinheiro seria suficiente para que cada um recomeçasse sua vida.

É uma estupidez institucionalizada.

Quando o programa da ultradireita diz que vai prender mais do que nunca, mas não faz nenhuma análise crítica, demonstra que é incapaz de entender o que está debaixo de nossos olhos. As facções são perigosas e estão organizadas no país inteiro por causa dessa política de encarceramento em massa sem inteligência, sem avaliação de suas consequências.

Precisamos apontar para o que é fundamental: a vida, a defesa da vida. Reduzir o número de homicídios, o que significa menos armas, não mais armas, menos prisões descartáveis…

Há um equívoco enorme nessa política, que está vendendo a imagem de força, de ordem, de segurança. Com esse obscurantismo, com essa falta de visão, nós vamos para o desastre.

RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA

Este é um momento de reflexão para nós todos e de muito trabalho, porque não dá só para contemplar e comentar. É o momento de mobilizarmos todas as nossas energias, nossas forças, nossos contatos, nossa inteligência para buscar virar o jogo. O que está em jogo é o futuro do país, é a devastação dos direitos sociais, é a soberania, é a própria democracia, é a Constituição, que foi fruto de tantas lutas contra a ditadura. Tantas vidas se perderam, tanto sangue foi derramado para que nós construíssemos a nossa precária, limitada democracia, mas ela é uma referência absolutamente essencial para nós.

Mais armas significa mais risco, mais mortes, em casa, na rua. Nós temos de compreender as raízes da violência. Se nós não nos ativermos às questões centrais da desigualdade, do racismo estrutural, nós não vamos mudar aqueles fatores que são fundamentais para a promoção do ódio e da violência.

RECONSTITUIR AS INSTITUIÇÕES POLICIAIS

Temos de reconstituir as instituições policiais. Não houve a democratização, a modernização das polícias para que elas enfrentem os desafios de nosso século. Nossos policiais sofrem toda a sorte de exploração, de humilhação. Os regimentos militares, tais como existem na maioria dos Estados, são inconstitucionais.

Os trabalhadores da área de segurança, os policias, precisam ser valorizados, não na retórica, mas na prática, porque sua responsabilidade é elevadíssima. Eles de fato são objeto de valorização apenas no discursos demagógico do político, mas são abandonados fora do período das eleições.

Temos uma imensa agenda pela frente, reduzindo desigualdades, aprofundando a democracia, enfrentando com olhos abertos o racismos estrutural que herdamos da escravidão, transformando as instituições da área de segurança pública, freando com todas as forças que tivermos o uso das armas e definindo a garantia da vida como nossa imensa prioridade, nossa prioridade fundamental.