Donald Trump late muito, mas é menos perigoso para o mundo do que seria Hillary Clinton. O recente ataque à Síria foi fumaça. Hillary estaria louquinha para invadir; Trump quer sair de lá. Focado nos EUA, ele recupera ideias de Ronald Reagan e busca um modelo de bases mais nacionais para reproduzir a hegemonia norte-americana. Com isso, fere interesses do capital globalizado e enfrenta violentos ataques de boa parte da elite. Cria instabilidades e imprevisibilidades. Rompe acordo com o Irã, abandona aliados europeus, abre negociações inéditas com a Coreia do Norte e mantém apoio irrestrito a Israel.

Esses são alguns dos pontos assinalados por Giorgio Romano Schutte, professor de relações internacionais e economia da Universidade Federal do ABC, em entrevista ao TUTAMÉIA. Analisando a geopolítica mundial de forma abrangente, ele esmiúça as questões em jogo nos vários pontos do planeta: os dilemas dos EUA, o “New Deal” na China, a guerra na Síria, o ressurgimento da Rússia, o acordo entre as coreias, o impacto do rompimento do acordo sobre o Irã, as dúvidas sobre a Alemanha, o projeto de Macron, a crise Argentina. Quem quer refletir mais sobre tudo isso não pode deixar de assistir o vídeo acima.

Romano avalia os fatos dentro do quadro de mudanças capitalistas. “Trump não é causa das confusões que estão sendo vistas; ele é expressão de um processo que vem de antes e que, a partir da crise de 2008, deixa claro as limitações do modelo de hegemonia dos EUA”, diz.

Esse modelo, iniciado no pós-guerra, entre em crise nos anos 1970 –guerra no Vietnã, revolução iraniana, ascensão do Japão etc–, quando a capacidade norte-americana de reproduzir sua hegemonia fica em dúvida e surge a conversa de declínio do poder dos EUA. Foram os tempos personificados por Jimmy Carter.

“Houve subestimação da capacidade do capitalismo americano e do Estado na sustentação a essa hegemonia. Veio Ronald Reagan, com uma fala que Trump estudou muito, um jeito de fazer [política] que não era o do mainstream republicano. Trump vai reproduzir muito dessas ideias, o “make América great again”. Reagan é que coloca para si dar essa resposta à queda de capacidade dos EUA de manter essa hegemonia”, afirma.

Com isso, há o reforço do dólar e dos gastos militares. O gasto público foi fundamental para financiar a capacidade industrial e tecnológica norte-americana. A internet e as grandes empresas que surgem nas últimas décadas são resultantes desse processo. A política dá certo e consegue até a queda da URSS. George Bush pai chega com a guerra do golfo, feita para mostrar a enorme capacidade dos EUA.

“Bush faz governo de transição. Clinton vai interpretar essa nova hegemonia, já garantida com Reagan, agora sem a guerra fria”, afirma, onde não havia alternativa ao poder norte-americano.

PUTIN REERGUE ESTADO NACIONAL

Esse quadro começou a mudar em 2000, analisa Romano. Com o fim da URSS –o país que mais sofreu no mundo com as duas guerras mundiais–, a Rússia tem uma transição bárbara de modelo. Há queda inédita na expectativa de vida, um colapso de 50% na produção industrial e uma total submissão às políticas dos EUA.

“Ninguém imaginava nos EUA que a Rússia teria capacidade de se reafirmar como Estado nação. Mas surgiu Vladimir Putin, que reorganiza a capacidade de controle sobre petróleo e gás como fonte de financiamento”, anota. Fazendo alianças, ele reestatiza parte desse complexo fundamental da economia e faz um projeto de desenvolvimento nacional. “E a Rússia ganha capacidade de se reerguer”.

“A novidade que ninguém previa que é a China”, enfatiza Romano. Segundo ele, ganha força a ideia de estados nações, de desenvolvimento com autonomia. Brasil e Venezuela estão nesse quadro. “Os EUA começam a perder o controle. Porque esse capitalismo global no qual apostaram não tem tanta lealdade com os próprios EUA. Essa especulação toda, os capitais que circulam pelo mundo. A crise de 2008 mostra a incapacidade dos EUA de dar uma resposta unilateral, lança dúvida sobre sua capacidade de dominar o mundo e dar as cartas”.

Na sua visão, o modelo de hegemonia norte-americana implantado a partir de 79 entra em crise e “os EUA estão procurando desesperadamente uma nova forma de reproduzir a sua hegemonia”. Romano faz um histórico desde o 11 de Setembro. Trata da importância do complexo militar-industrial-tecnológico. Ressalta o desastre da guerra do Iraque, que criou as condições para o surgimento do Estado Islâmico. E da situação atual:

“O paradoxo é que Trump quer retirar algumas tropas dos EUA no mundo inteiro”. Na sua visão o presidente dos EUA é “bastante pragmático; ele não é louco”.

NEW DEAL NA CHINA

Na China, o grupo que leva Xí Jìnpíng ao poder entende as mudanças e percebe o seu próprio poder. “A China se dá conta de que é o ator crucial. Até então, seu crescimento era absolutamente integrado –e, de certa forma, subordinado à lógica do capitalismo americano, uma fronteira de expansão do capitalismo americano. A China entende que está na hora, que tem capacidade de virar o jogo, ser o centro de uma dinâmica de acumulação do capital”, declara o professor.

Segundo ele, esse contexto explica a criação de instituições, sem a participação dos EUA, como o banco dos BRICS. Há planos arrojados de investimentos, discussão sobre moeda, as Olimpíadas, a fundação da primeira base militar fora do país, na África. Se, nos anos 1980, os EUA conseguiram dobrar o Japão e a Alemanha na questão cambial e comercial, hoje a China não se curva.

Internamente, o dinamismo da China passou a enfrentar contradições, observa Romano.  Ondas de greves pressionam por aumento de salários e por melhorias nas condições de trabalho.  A transição de uma economia voltada para a exportação para uma focada no mercado interno exige melhoria de renda: salários mais razoáveis são essenciais para aquecer as compras e a produção. Também a ênfase na indústria pesada passa a ser matizada pela manufatura de bens de consumo.

“China está passando por um New Deal, um novo pacto entre os trabalhadores e o Estado, que exatamente coincide com essa política de Xi, o ‘novo normal’. Além dos salários, há muita insatisfação da população em relação ao ambiente. O PC chinês sempre foi muito aberto. Há muitos anos tem consciência disso. Depois de Mao e de Deng, Xi representa esse conjunto de mudanças ao encontro desses novos anseios da população: salários, ambiente, redução das desigualdades. É uma afirmação de que a China não precisa ser mais coadjuvante do capitalismo norte-americano. Existe agora um capitalismo chinês, um capitalismo de estado”, analisa Romano.

PERIGOSA HILLARY

Diante dessa nova realidade, os Estados Unidos estão reagindo. “Hillary tinha um projeto para recuperar a hegemonia dos EUA 3.0 que teria sido mais perigoso. Porque ela tem essa ideia de ocupar o mundo inteiro. Obama segurou a invasão na Síria por causa do sinal que veio do Reino Unido –o parlamento votou contra. Hillary queria entrar, ela sempre foi mais agressiva, inclusive na América Latina. Ela queria por escudos antimísseis na Polônia. [Se isso tivesse sido feito], a relação com a Rússia teria sido muito mais conflitiva.  A ideia dela é a de que não se constrói uma hegemonia sem esvaziar, neutralizar o poder de outras forças –apesar de não serem forças globais; são potências regionais”, declara Romano.

E segue: “Enquanto Trump vem com um projeto que tem imprevisibilidade, mas que está muito mais voltado para o America First”. O professor trata então da Coreia, do discurso de Trump ao receber os prisioneiros liberados pela Coreia do Norte. Ressalta que o presidente norte-americano falou em desnuclearizar toda a península. E agrega:

“O mundo esquece que há armas nucleares dos Estados Unidos na Coreia do Sul. A maior base dos EUA fora dos EUA é na Coreia do Sul”.

A entrevista, no vídeo acima, tem muito mais: Síria, Argentina, França, Alemanha. Uma aula imperdível de geopolítica global.