Até pouco tempo atrás, Roberto Saturnino Braga achava que as eleições deste ano não iriam acontecer.  Afinal, raciocinava ele, depois que “os golpistas  desavergonhadamente fizeram tudo o que fizeram e sabem que vão perder as eleições, vão entregar aos golpeados? Achava impossível isso”.

Agora, ele pensa diferente: está convicto de que as eleições vão ocorrer. “O Brasil não sairá desse poço profundo em que caiu se não através do pronunciamento do povo, uma manifestação popular ainda que capenga, sem a presença de Lula, que é o principal líder do país. É uma manifestação que pode mostrar o caminho a ser seguido pelo Brasil depois de todo esse desastre”, afirma. E acrescenta:

“Vamos ter essa oportunidade, e eu estou certo de que os golpistas vão entrar pelo cano. Eles vão perder as eleições, não têm candidato, não têm argumento, não têm razões, não têm o que dizer na campanha. Estão derrotados, previamente derrotados”.

E segue: “Golpista nenhum vai ter voto ou vai ter muito pouco voto. Porque a população entendeu o que aconteceu. No tempo de Getúlio, o pretexto foi o mesmo, o mar de lama. Depois que Getúlio morreu, não tinha mar de lama nenhum, não tinha corrupção. Vamos ter eleições e vamos ganhar, não sei com que candidato. Os antigolpistas vão ganhar.

Na sua visão, “Lula é o grande líder político no Brasil, e o mundo inteiro reconhece. Como foi Getúlio. Lula pode estar preso, podem fazer o que quiser. Mas enquanto ele estiver vivo, é o grande líder político do Brasil. E a palavra dele vai ter peso enorme”.

MILITARES EM DEFESA DAS ELEIÇÕES

Senador, deputado federal, prefeito, vereador, escritor, aos 86 anos Saturnino esbanja energia e sensibilidade política em entrevista ao TUTAMÉIA. Afirma que os golpistas tentaram de tudo:

“Essa greve dos caminhoneiros foi a última tentativa de criar o caos e chamar os militares. Os caminhoneiros tinham muitas razões e golpe entre aspas aproveitou o fato para agravar, impedir a volta dos caminhoneiros, gerar uma situação de caos que levasse os militares a pensar: ‘Bom, caos não dá, então chegou a nossa hora de intervir’. E com isso eles achavam que os militares não iam fazer eleição”. E segue:

“Se tivesse dado certo esse plano deles, e os militares tivessem tomado o poder, eu tenho a convicção de que os militares assumiriam para realizar eleições. Porque compreenderam que o único caminho de normalizar a vida do país, que foi tão destruída, é convocar a eleições e ver o pronunciamento popular”.

Saturnino pondera que a situação é muito complexa e dinâmica, levando a mudanças constantes de avaliação. “O que eu sinto é que agora há uma compreensão de que esse golpe foi para derrubar mesmo o Brasil, e há uma exigência de normalização”.

PRIMEIRO VOTO FOI EM GETÚLIO

Diretor-presidente do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas Públicas para o Desenvolvimento, Saturnino formou-se em engenharia, trabalhou no então BNDE e construiu uma trajetória política em defesa do nacionalismo e das ideias da esquerda. Ao TUTAMÉIA, ele fala do contexto dos golpes no Brasil:

“O Brasil não tem apenas uma economia dependente. O Brasil é um país dominado, como toda a América do Sul. Tem aquela visão do [James] Monroe [presidente dos EUA de 1817 a 1825, cuja doutrina era: “América para os americanos”]. Na verdade, era a América para os norte-americanos. Sempre foi assim. Sempre que o Brasil buscou um caminho próprio, um projeto próprio de desenvolvimento, ele foi golpeado”.

E continua: “Foi com Getúlio. Eu assisti; era jovem. Votei em Getúlio Vargas; tenho esse galardão que gosto de manifestar. Meu primeiro voto foi em 1950; tinha 19 anos e votei em Getúlio Vargas presidente. Getúlio conseguiu elaborar um projeto de desenvolvimento brasileiro: Petrobras, Eletrobrás, Vale do Rio Doce, BNDE, Companhia de Álcalis, Fábrica Nacional de Motores, Companhia Siderúrgica Nacional”.

MAR DE LAMA CONTRA EMANCIPAÇÃO DO PAÍS

“Era um processo de emancipação do país. Aí feriu os interesses: ‘Brasil é quintal e tem que continuar a ser quintal’. Aí inventaram toda aquela coisa do mar de lama. Assisti a tudo isso. No fundo era para derrubar o Getúlio. E ele, antes que fosse derrubado, escreveu a carta [testamento]. Para deixar para a nação escrito o que estava acontecendo: uma reação contra o projeto de desenvolvimento nacional”.

Saturnino analisa o golpe que derrubou João Goulart, num momento de “auge da guerra fria”. E vai para o caso de Dilma Rousseff. Na sua opinião, “o projeto de melhoria da situação do povo não interfere muito com os donos do poder”. As razões centrais do golpe de 2016 estão na geopolítica: na aliança do Brasil com os países dos Brics, a descoberta do Pré-Sal e o fortalecimento da Petrobras, a liderança do país na América do Sul na construção de “um projeto de emancipação de todo o continente sul”.

“Isso foi demais. Aí veio o golpe. Depuseram a presidente que não cometeu crime nenhum, uma pessoa honesta. Perderam a eleição no Brasil e tiveram que dar o golpe”. Daí a maior abertura a estrangeiros no Pré-Sal e as tentativas para dissolver a aliança sul-americana.

CERRAR FILEIRAS PELA SOBERANIA

 “A cada momento a gente se ilude. Eu pensei que o Brasil tivesse conquistado minimamente a sua autonomia, a sua soberania. Não conquistou, ainda temos que conquistar. É uma tarefa, é uma missão fundamental dos nossos políticos, do nosso povo: cerrar fileiras em torno desse objetivo de conquistar a soberania nacional”, declara.

E acrescenta: “Tenho certeza dessa dominação americana sobre o continente e sobre nós. Não quero criar sentimento de ódio à nação e ao povo americano. Eles estão fazendo o que eles devem fazer: defender os interesses deles. Nós é que temos que aprender a defender os nossos interesses e não achar que os nossos são os deles”.

GOLPE TENTA JOGAR PAÍS NA SARJETA

De acordo com Saturnino, o golpe em curso não tem comparação na história brasileira: “Esse golpe teve um objetivo de desmoralizar o Brasil, jogar o Brasil na sarjeta. O Brasil que estava pretendendo ter presença internacional, como reconhecimento de sua dimensão. De repente, era preciso não apenas ser derrotado nesse projeto, mas ser desmoralizado. Jogar o Brasil na sarjeta. Tem que se subordinar”. E segue:

“Parece que há um propósito de desmoralizar o Brasil, tudo, a política, como se a nossa vida política tivesse enrolada numa corrupção insanável. Desmoralizar o Brasil e os brasileiros até o fundo do poço”.

E como foi a reação?, perguntamos. Saturnino: “A reação foi profundamente adormecida pela grande mídia, aliada do grande capital que quer submeter o Brasil a esse projeto de desmoralização. A população ficou, durante muito tempo, anestesiada”. Essa situação, para ele, começa a mudar. E os norte-americanos vão perder aqui.

DISCUTIR O BRASIL PÓS-GOLPE

Saturnino relata ao TUTAMÉIA as diversas iniciativas de debate em curso no país sobre projeto de desenvolvimento. A página do golpe será virada. E ele conclama: “Temos que discutir o Brasil pós-golpe. Discutir e elaborar o projeto brasileiro e saber implementá-lo, fazendo política internacional”.

E quais seriam os pilares desse projeto? Ele cita três fundamentais:

  1. Democracia, com direitos humanos, garantia de direitos, respeito a minorias. “Democracia não é só o voto”, diz.
  2. Desenvolvimento econômico do país que ficou paralisado, “com uma atenção especial na indústria”, enfatiza.
  3. Questão social. “Não há projeto nacional que tolere a desigualdade”, ressalta, defendendo a adoção de políticas públicas de redução das desigualdades em todos os campos –social, racial, de gênero.

Para Saturnino, é preciso resgatar a presença do Estado: “Mercado não faz desenvolvimento. É preciso retomar a luta pelo desenvolvimento com redução das desigualdades”.