“Racismo é uma máquina infernal de produzir mentalidades. Racismo cria confusão, é para embaralhar as coisas. Racismo é político, porque, a depender do jogo de força, se constitui uns como negros, outros como brancos. Racismo é a lógica da confusão. Não é para explicar nada: é para confundir as pessoas, dividir as pessoas, fazer com que as pessoas adoeçam física e mentalmente. É para isso que serve o racismo”.

Assim fala o advogado Silvio Almeida em entrevista ao TUTAMÉIA. Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP, ele está lançando “O que é racismo estrutural?”, editado pela Letramento em parceria com o selo Justificando. O livro faz parte da coleção “Feminismos Plurais”, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro.

Indo direto ao ponto essencial do livro, Almeida declara:

“Não existe racismo que não seja estrutural. É elemento que faz parte da reprodução da política, da economia e da constituição das subjetividades. Não é anormal, não é uma patologia: é parte integrante da sociedade”.

Na conversa, Almeida fala do contexto histórico. “Há uma relação intrínseca entre o desenvolvimento do capitalismo e constituição das raças. A construção da modernidade é a construção da raça. Não se separa modernidade de colonialismo. Colonialismo não é circunstância, é tecnologia”.

Almeida enfatiza que a formação das raças está ligada ao aumento da violência e do controle social –o que é hoje aplicado contra as populações pobres do mundo inteiro.

GOLPE É REARTICULAÇÃO DAS FORMAS DE ILEGALIDADE

Falamos no momento atual: da regressão civilizatória, do enxugamento de programas de inclusão, cortes no orçamento, aumento da pobreza, do desemprego, da violência. Os negros são os mais atingidos, sofrem com força muito maior os retrocessos.

Almeida avalia que o golpe de 2016 significou a destruição do “pilar legitimador” no país. A resultante foi a “rearticulação das formas de ilegalidade”.

Ele lembra que os cortes nas políticas universalistas têm impacto maior sobre a população negra –80% é usuária do SUS, por exemplo. Trata da poda no financiamento para vagas nas universidades, consequência do enxugamento do orçamento nos itens que atendem a população como um todo.

O advogado conta que, como professor de uma das universidades privadas mais importantes do pais, notou que os alunos negros, por conta desses cortes, saíram de cena: “Nos últimos dois anos, pela primeira vez, tenho classes sem alunos negros. Salas inteiras não têm negros. Com a diminuição no Fies, fica mais difícil acesso e acaba afetando a população negra”, observa.

POLÍTICA DO GANHA-GANHA PARA O CAPITAL

Almeida enxerga em todo esse quadro um aumento na insatisfação e um crescimento na repressão. As políticas de austeridade fiscal, ressalta, provocam “políticas de estado máximo no campo do direito penal”. Daí as propostas de redução da maioridade penal, privatização de presídios etc. Ligado a isso, ele coloca a terceirização, corte de direitos sociais, os extermínios. “É a política do ganha-ganha para o capital”.

O professor debate raça e classe. É preciso priorizar a questão racial com a luta de classes? –a velha pergunta que ronda os movimentos sociais. Para ele, não tem como falar da formação de classes não tendo a raça como elemento fundamental para constituir essas classes.  Assim, na sua visão, a pergunta é “retórica; não se pode falar como se fossem coisas separadas”. E afirma:

“Quem dentro da esquerda quer afastar a questão de raça e tratar apenas da de classe está tendo uma posição reacionária. Porque não quer entender a emergência desses elementos chamados identitários como ligados à economia política e às crises do capital”.

Falamos da história dos movimentos negros, aqui e no exterior. Almeida defende a necessidade de “pensar em transformação social, um novo projeto político econômico, civilizatório para a humanidade” –condição para a extirpação do racismo.

RESGATE DE LUIZ GAMA

Na sua visão, é preciso “colocar a questão racional como elemento central para pensar qualquer projeto político e econômico no brasil”.

Como Almeida é também é presidente do Instituo Luiz Gama, conversamos sobre esse personagem fundamental e tão esquecido da história brasileira. Gama (1830-1882) nasceu livre, mas foi escravizado. Liberto, estudo e trabalhou na defesa de escravos. Consegui libertar mais de 500 pessoas nos processos judiciais em que atuou.

O professor conta que não conhecia de fato a trajetória extraordinária de Gama. Foi lendo um artigo do jurista Fábio Konder Comparato que ele atentou para a importância fundamental do personagem. “Foi minha tomada de consciência”, lembra.

Há dez anos, Almeida criou, com um grupo, o Instituto Luiz Gama, que faz debates, promove cursos e dá assistência à população. A ideia de formação do lugar surgiu a partir de uma demanda de quilombolas que lutavam pelo seu reconhecimento junto ao poder público. O professor conta que sentiu uma “chamada ancestral” e passou a atuar de forma mais ativa.