O modelo de encarceramento em massa foi importado dos EUA e não deu certo em lugar nenhum. No Brasil, vitaminou o crime e seu braço mais forte, o PCC –a principal organização criminosa na América Latina. O grupo funciona como uma maçonaria, juntando muitos empresários, fazendo trocas de acordos e favorecimentos de forma descentralizada.

É o que afirma o sociólogo Gabriel Feltran ao TUTAMÉIA. Professor da Universidade Federal de São Carlos e diretor científico do Centro de Estudos da Metrópole, ele está lançando “Irmãos, Uma História do PCC” (Companhia das Letras).

Para ele, a organização política do PCC é relativamente autônoma da dimensão econômica. São pequenos, grandes, médios empresários, de roubo de carro, de desmanche, do tráfico internacional, nacional, “uma organização de pessoas que estão em mercados ilegais e que percebem que associados vão render muito mais do que se estivessem sozinhos. É a lógica de sociedade secreta. Isso não se vê nos cartéis mexicanos, colombianos”.

Com força, o grupo pode se expandir –mas de um jeito próprio. “Se tinha uma empresa fordista de produção, agora é a empresa-rede, é espalhadão”. Um toyotismo em substituição ao fordismo nesse mercado, perguntamos? “Total. Não tem decisão centralizada”, diz (veja a íntegra no vídeo acima).

MASSACRE DO CARANDIRU NA ORIGEM

A história do PCC está ligada ao movimento de reação ao massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 presos foram assassinados na Casa de Detenção em São Paulo. O morticínio deu argumentos aos que não acreditavam mais na ação de grupos de direitos humanos e de religiosos na defesa dos encarcerados. Passou a ganhar força, em 1993, a ideia de que a defesa dos presos deveria ser feita por eles mesmos, conta Feltran.

Nessa mesma época, o governo de São Paulo “modifica sua política de segurança e coloca o encarceramento no centro dessa política”, diz Feltran. A ideia central é a de se tem que produzir a sensação de que as pessoas vão ser punidas caso cometam crime. Que coloca na cadeia a pessoa que trafica na esquina, sem que isso mexa na estrutura do negócio.

“É um modelo importado dos EUA, não deu certo em lugar nenhum”, afirma. Em números, São Paulo tinha 41 mil presos no começo dos anos 1990; hoje tem 260 mil e um milhão de ex-presidiários.

Colocando os dados em perspectiva, se forem contabilizadas as famílias envolvidas, chegaremos a um grupo de 5 milhões de pessoas, perto de 10% da população do Estado. Feltran enfatiza a criminalização das famílias. “O mundo do encarceramento é muito duro, humilha as mães, dificulta a volta produtiva. As pessoas se sentam perseguidas pelo Estado”.

Assim, o sociólogo afirma: “O encarceramento em massa fortalece o PCC”.

MORTICÍNIO, PAZ E LUCRO

O PCC já tem 25 anos. Até 2001 era visto como facção do mundo das penitenciárias paulistas, lembra o sociólogo. Em fevereiro daquele ano, um motim atingiu 27 presídios, envolveu 27 mil presos e deixou 16 presos mortos e dezenas de feridos.

Depois veio o fatídico final de semana do Dia das Mães de 2006. Ataques deixaram 45 policiais mortos de sexta para sábado. A reação foi enorme: 493 mortos. “Não só gente do crime morreu neste momento. Foi um período muito letal na cidade de São Paulo”, recorda Feltran.

Maio de 2006 mostrou dois lados com muita força. Da parte do crime, significou a explicitação da hegemonia do PCC. Da parte do Estado, houve uma reação muito forte. O sociólogo lembra que a PM de São Paulo tem um efetivo maior do que o Exército brasileiro e atua com equipamentos melhores.

“Os anos que se seguem são de muita paz entre aspas. Tem muita troca mercantil, muito dinheiro rolando de um lado para outro. O crime vai se estabelecendo nos territórios de periferia. Empresários do crime ganham muito dinheiro nesse momento”, relata o sociólogo.

Esse aumento de lucratividade permite que o grupo pague as pessoas que poderiam denunciar o crime: agentes do Estado, moradores, controladores. “A violência é baixa muito porque o dinheiro está mediando o conflito entre eles”, observa.

MEXICANIZAÇÃO

Nesta entrevista, concedida quando ele ainda escrevia “Irmãos”, Feltran traça paralelos entre o Brasil e o México. Ressalta as diferenças históricas. Lembra que o México fez uma revolução nos anos 1910, conquistou a reforma agrária e teve uma urbanização bem mais lenta que o Brasil. Se aqui a droga chegou nos anos 1980, com a urbanização já dominante, no México ela atinge primeiro as zonas interioranas, como rotas de passagem, com baixo consumo local. Já aqui, o consumo nas áreas urbanas foi sempre importante.

No México, a curva de homicídios explode a partir dos anos 2000, quando o governo adota a política de guerra às drogas, ampliando a corrupção e a violência. Se a carnificina fica escancarada no México a partir de 2007, aqui “a nossa carnificina vai ficando para baixo do tapete”, diz.

PERIFERIA ESTÁ MAIS CRÍTICA

Autor de “Fronteiras de Tensão” (Unesp, 2011) Feltran trata, na entrevista, de cultura na periferia, evangélicos, resistência. Avalia também os desdobramentos da política de austeridade nas periferias brasileiras. Ressalta as mudanças que ocorreram em razão das políticas de crédito, de educação, de saúde, de serviços:

“A ascensão econômica na última década mascarou o recrudescimento do conflito urbano entre ricos e pobres. Esse conflito está se intensificando bastante, se pegarmos os últimos 80 anos, está se tornando mais intenso. A música da periferia demonstra isso com clareza”.

Hoje, diz ele, “há retrocesso em todas as áreas. Estamos voltando para os anos 1960, um governo muito autoritário, um sistema político que precisa usar de muita força para se manter no poder. Seja força econômica ou violência policial. Com consequências severas para as próximas décadas”.

E acrescenta:

“Mas o mundo sempre tem tensão, reação. Não é que está tudo dominado. Há muita reação, embora ela não seja muito virtuosa politicamente. Periferia está mais crítica do que era”.