“Nos meus quase oitenta anos, eu nunca vivi, talvez, um instante de tanta angústia. Estou revivendo aquilo que nós passamos durante a ditadura, quando foi dado o golpe. Eu me lembro que, quando o golpe veio, em 1964, eu tinha acabado de me formar na Faculdade de Direito. Fui orador de turma de 1963 e, no discurso que fiz, na festa de formatura, eu disse que nós éramos a turma despedinte da democracia. Eu estou com medo de nós estarmos nos despedindo da democracia outra vez. A situação hoje é realmente dramática. Nós temos de lutar até o finzinho, mas eu estou muito pessimista”, afirma o jurista José Carlos Dias, ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso.

O pessimismo, porém, não o paralisa. Ao contrário. Em entrevista ao TUTAMÉIA, Dias, que tem uma longa militância em defesa dos direitos humanos, fez verdadeira conclamação aos democratas:

“Precisamos estar juntos. É hora de a sociedade civil resistir, como fizemos quando estávamos na ditadura, pela anistia, como fizemos pelas diretas já. Nós temos de tentar fazer com que a gente adquira forças suficientes para enfrentar, porque nós não podemos nos entregar.”

Ele mesmo, que foi presidente da Comissão de Justiça e Paz, tem participado de manifestações públicas de apoio à candidatura de Fernando Haddad como única forma de enfrentar a ameaça à democracia e ao estado de direito que a candidatura Bolsonaro representa.

Neste sábado, por exemplo, assina mensagem de democratas que publicaram texto em jornal de grande circulação chamando a “uma frente progressista do tamanho do Brasil”. Seu nome estava ao lado de figuras como Caetano Veloso, Celso Amorim, Marieta Severo, Fernando Meirelles e professor Pasquale Cipro Neto [e outras 22 mil pessoas].

Na última quinta-feira, participou de ato público em que advogados, juízes, professores, desembargadores entregaram manifesto de apoio à Fernando Haddad. Estava na mesa ao lado de outros tantos não petistas que, nesta hora, decidiram se unir numa grande frente em defesa da democracia.

Na saída do evento, realizado em um hotel na zona sul de São Paulo, foi vítima de agressão por parte de duas senhoras que passavam de carro. Assim foi o episódio, conforme o jurista contou ao TUTAMÉIA (veja a entrevista completa no vídeo no alto da página):

“Eu saí para pegar o carro, eu estava esperando um táxi, passou um carro com duas senhoras que começaram a nos insultar. Nós não estávamos fazendo nada, estávamos esperando um táxi!. Tinha um jornalista do Estadão, estava eu, estavam minha filha e mais alguns outros advogados ali. Não tinha nenhuma bandeira, não tinha nada, não tinha nenhum petista lá. A mulher começou a gritar: “Comunista! Filho da puta!” Começou a nos insultar, cuspiu na gente.”

Para Dias, “isso mostra a histeria” que tomou conta das pessoas.

“O Bolsonaro é o incentivador dessa violência. Ela prega a violência. E isso incentiva as pessoas a atuarem dessa forma. É assim que eu penso”, diz o jurista, reafirmando:

“O Bolsonaro realmente incentiva a violência. E não é só a questão da violência nas cidades. É toda a posição política dele, como a posição referente ao meio ambiente. Eu não tenho dúvida de que vai haver desmatamento na Amazônia [se Bolsonaro for eleito]. Ele já está pregando uma política de aculturamento dos índios. É uma coisa impressionante, porque ele vai contra toda a posição progressista que nós sempre pregamos.”

AMOR À DEMOCRACIA

Assim ele, que é adversário histórico do Partido dos Trabalhadores, propõe o voto em Haddad, sem  abdicar de críticas severas ao PT: “Eu também sou antipetista. Vivemos um período em que eles fizeram mil malfeitos, cometeram erros graves, houve corrupção deslavada como nunca houve no Brasil, administração péssima, aparelhamento do Estado, mas o Estado de Direito permaneceu. Nós não entramos numa ditadura.  Então não se compara isso com a Venezuela. Agora, quando nós corremos o risco de ter a ditadura pelo voto, é de alarmar. E eu temo que, com o Bolsonaro, nós corremos o risco de partirmos para um regime ditatorial”.

É o que lhe faz dar apoio à coligação PT-PCdoB:  “Eu disse à imprensa que só o Bolsonaro para me fazer votar no PT. Não tem outro jeito, não tem outra alternativa. Eu disse que eu entendia que o Bolsonaro é um crápula, que vai fazer mal para o Brasil. Já fez e vai fazer mais mal ainda”.

Dias fez, na entrevista, uma “declaração de amor à democracia”. E lembrou seu trabalho na direção da Comissão Nacional da Verdade, que investigou os crimes cometidos durante a ditadura:

“O papel da Comissão da Verdade foi documentar tudo aquilo que aconteceu na ditadura para que não se repita no futuro aquilo que aconteceu no passado. E para mostrar às novas gerações o que aquilo representou. A garotada que foi morta naquele período, que foi torturada, operários, estudantes, intelectuais, todas essas pessoas que foram sacrificadas. Isso tem de ser mostrado. Nós temos o dever de exercer essa pedagogia, mostrar para essa nova geração que nós não podemos correr o risco de repetir aquilo que aconteceu.”

TOFFOLI COAGIDO

O ex-ministro da Justiça também comentou a situação atual do mundo do Direito: “Já disse de público, em palestras, que, em mais de 50 anos de advocacia –neste ano vamos comemorar os 55 anos de formatura –, eu nunca vi um Supremo tão ruim”.

Usou como exemplo recente afirmação do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, que disse preferir chamar o golpe de 1964 de “movimento”.

“A declaração que ele acaba de fazer é pavorosa. Eu sempre o tive na conta de um moço progressista, bem situado ideologicamente, e ele faz uma declaração dessas”, lamenta Dias, afirmando que essa fala foi resultado de pressões:

“É claro que ele foi coagido. Não tem dúvida. Ele foi pressionado. Espontaneamente, ele não ia dizer uma coisa dessas. Ninguém, nem as pessoas de direita, ousam dizer que nós não vivemos uma ditadura. E ele disse isso: chamou de movimento. E o mais grave: pela primeira vez na história do Brasil, um presidente do Supremo tem como chefe de gabinete um general. É uma coisa inacreditável isso.”

Por causa dessa afirmação, perguntamos a José Carlos Dias se ele considerava que o Brasil já está hoje sob tutela militar. Ao que ele respondeu:

“Eu não ouso dizer isso. Por enquanto, não, e nós temos de resistir. Mas há fatos que nos deixam em pânico, sim. Como esse. Não sei o que deu no Tofoli… Com quem, aliás, eu tenho uma relação amistosa. Frequento o Supremo como advogado. Mas nem por isso eu me escuso de fazer as afirmações que faço com referência ao Supremo”.

E continuou: “Eu não posso admitir que, por ser advogado e ter processos no Supremo, eu deva tornar-me sempre simpático aos ministros. Não! Depois de 55 anos, eu tenho é que dizer as verdades que eu sempre disse. Eu acho que o Supremo está péssimo, está péssimo!

Admite que “o Supremo tem tomado algumas posições muito boas”. O que não esconde suas falhas: “Há alguns problemas. Por exemplo, a questão das decisões monocráticas. Questões absurdas, como o auxílio moradia, que foi engavetado pelo Fucs, aquilo é uma vergonha. Juiz ganhar auxílio moradia!!! E os professores? Outra coisa: pedidos de vista de processos que não voltam para o plenário. Ao lado de algumas decisões que são importantes, a gente vê no varejo que a maior parte das questões está sendo tratada de maneira desprezível”.

Afirma que há necessidade de mudança:

“O Supremo deveria passar por uma reforma. Acho que o Supremo deveria ser uma corte exclusivamente constitucional, não deveria ser mais um tribunal de apelação, como hoje é. Enxugando as decisões. A Suprema Corte americana julga poucos casos, mas são casos exemplares, e dentro de uma compostura muito grande. Juiz não pode falar no corredor. Juiz tem de falar nos autos. E o Supremo tem de dar o exemplo. Tem de haver um recato.”