“Fiquei impressionada que o cara que escrevia na máquina tremia muito. Não sei por quê”, disse minha irmã, recuperando uma das poucas lembranças do dia em que acompanhou o interrogatório de meu pai no Dops, no Palácio da Polícia do Rio Grande do Sul, durante a ditadura militar.

O prédio retangular, enorme às vistas da então menina de onze anos, abrigou porões de tortura, masmorras em que brasileiros foram deixados para morrer, perversidades que fizeram a fama de delegados facínoras. Tinha salões imensos com acesso pela entrada principal e câmaras alinhadas em um corredor escuro, com entrada pela avenida Ipiranga, na mesma ala em que ficavam as celas.

“Era uma sala pequena, sem cores”, diz minha irmã, que quis porque quis acompanhar o pai no depoimento, imaginando talvez que pudesse protegê-lo.

No cubículo preto e branco, tons cinzas, alguns marrons na lembrança da menina, um polícia fazia as perguntas, outro datilografava as respostas. Tremia muito, disse minha irmã, que não se recorda os ditos, só as imagens.

Era tempo de Copa do Mundo.

Para nós, que acompanhávamos a luta de nossos pais em defesa da democracia, o sofrimento da família –no ano anterior, meu pai tinha perdido o emprego por causa de um livreto que mandara editar, motivo também do inquérito a que respondia–, havia um sentimento dúbio em relação à euforia que se instalava no país.

Garoto eu, devorava as páginas esportivas dos jornais, lia o “Correio do Povo”, que chegava a nossa porta de manhã cedinho. A “Folha da Manhã” eu tomava emprestado do cobrador do ônibus que me levava à escola. No fim do dia, lia as crônicas da “Folha da Tarde”, que o namorado de uma tia levava à casa de minha vó.

Torcia e me revoltava. O ditador de plantão era gremista! Para mim, com 13 anos, tratava-se de uma ofensa ao tricolor, um atentado contra minha própria torcida, contra o time que meu avô me ensinou a idolatrar.

E o ditador se metia no futebol! Por obra dele, o comunista João Saldanha perdeu o cargo de treinador da seleção. Na verdade, se bem me lembro –e não me lembro muito bem–, não foi tanto a perseguição política que me revoltou, mas sim a destruição de um caminho heroico: eu queria torcer era pelas “Feras” de Saldanha, que sabíamos comunista pelas conversas à boca pequena.

Acompanhava discussões, até participava delas, mesmo guri de calças curtas, intermináveis disputas sobre a legitimidade de torcer ou não pela seleção.

Ela era o governo? A seleção era a ditadura? Era Médici? Era a tortura, o terror?

Havia medo.

Às vezes, pavor, como quando a família toda, empilhada na DKW que parecia estar sempre a tossir, voltava de Vacaria pela perigosa BR 116. Meus pais tinham participado de um encontro com religiosos de oposição, que viviam em uma comunidade na cidadezinha serrana, mais tranquila, talvez mais segura que a vizinha Caxias.

Padres, frades, freiras, diáconos, todos iluminados pela teologia da libertação, fazendo o que então se chamava de trabalho de base, montando associações de bairro. Alguns deles, mais tarde fiquei sabendo, se integraram à Ala Vermelha, outros tinham ou tiveram mais simpatia pela Ação Popular.

Pois voltávamos a Porto Alegre no meio de uma tarde de domingo, depois de um fim de semana de reuniões. Para nós, os filhos, era um passeio gostoso, ainda que soubéssemos ou inferíssemos que era preciso um certo secretismo sobre os encontros. Eu de vez em quando entrava de contrabando nas conversas, ia aprendendo a linguagem e as operações.

Agora, na estrada, era só a família. De repente, ouvimos até antes de ver: sirenes da polícia em desbragada gritaria, e logo em seguida os carros em alta velocidade, no sentido contrário, subindo a serra.

Vão nos parar!!! Pensamos todos os que podíamos pensar.

Eles seguiram, passaram, foram embora, mas o terror não passou. Até chegarmos a Porto Alegre, as conversas giraram em torno do que aquele tanto de polícia ia fazer, aonde iriam os porcos, será que os meganhas estavam atrás dos nossos amigos?

É isso. Muito do que fazíamos, fazíamos com medo. É mais um efeito perverso da ditadura, instaurar a desconfiança de que se pode fazer o que se quer fazer, se é seguro ou se não é, aonde ir, como ir…

E a Copa chegando, ia ser a Copa da televisão, as propagandas já dominavam as telinhas, as músicas não deixavam nossos cérebros. Mesmo assim, havia que reagir.

“Me lembro de tu me dizendo que enquanto cantavam a música da Copa tinha gente sendo torturada”, diz minha irmã, que tem memória mais viva do que a minha.

Isso também dá raiva até hoje, dá ainda mais ódio à ditadura, que queria se confundir, nas nossas mentes, com o Brasil. Nas propagandas, empurravam goela abaixo o “ame-o ou deixe-o”, mais um desafio, provocação contra todos nós que amamos e ficamos e queremos mudar e queremos torcer pelo Brasil.

Era o que eu queria, mesmo sem o Saldanha, mesmo com as feras transformadas em escrete canarinho, mesmo sabendo das torturas, das perseguições…

A elucidação do caminho foi dada por Zé, um clandestino que às vezes buscava abrigo em nossa casa ou fazia de nossa sala ponto para reuniões secretas. Para nós, ele tinha uma aura quase heroica. O que dizia não era lei, mas trazia muito peso, o peso da verdade, o peso de quem luta mesmo nas mais adversas condições.

Foi ele quem pela primeira vez me falou de Roberta Flack. Era sua cantora predileta, respondeu ele num daqueles questionários que eram brincadeira apreciada por adolescentes, mais as meninas, mas também os garotos.

Eu tinha um caderno de capa dura em que escrevia minhas coisas, às vezes uma poesia, uma tentativa de conto, registros quaisquer. Lá estavam as perguntas que ofereci a Zé, um nordestino magrinho, mirrado, de cara chupada, homem feito, mas quase do mesmo tamanho que eu, guri de ginásio. Talvez porque andasse sempre encurvado, escondido numa jaqueta bege, como a querer diminuir ainda mais de tamanho, sempre capaz de escapar por qualquer brecha.

Pois numa dessas, sem questionário nem nada, perguntei a ele se iria torcer pelo Brasil, a questão que se engalfinhava comigo, perdido numa briga entre mim e eu mesmo, em que disputavam a ética, a vontade política, o ardor pátrio e o gosto pelo futebol.

Na época, eu ainda jogava com a gurizada da rua Pelotas. Nos fins de semana, fazíamos nas calçadas e no asfalto nosso campo de futebol, onde não tinha falta nem escanteio nem bola fora, era um campo sem laterais, onde ia a bola, íamos nós. A partida só parava quando algum carro desavisado subia a Pelotas, vindo da Farrapos, a grande avenida de Porto Alegre na época, que ia desde as redondezas do centro até quase a boca da BR 116, já nas bordas do aeroporto: o invasor não era vaiado nem chutado, mas observado em silêncio raivoso pela turma.

Pois o Zé, clandestino, para nós herói cavaleiro da luta contra a ditadura, misterioso em sua arte de não ter nome completo nem sobrenome, só Zé, resolveu a parada: ele iria torcer pelo Brasil.

Que beleza!

Se ele pode, podemos todos. Haja coração!

E haja garganta! E haja ouvidos da minha vó…

O grupo brasileiro da Copa de 1970 retratado por Fernando Carvall, que também fez a ilustração de Everaldo, no destaque

(A bem da verdade, se é que se pode pensar em verdade nessa mistura de memórias de menino, em que as coisas se misturam de cambulhada, tenho para mim que, com Zé ou sem Zé, eu acabaria torcendo pelo Brasil. O Brasil era (é!!) nosso, do povo, dos brasileiros, dos torcedores, dos apaixonados, dos filhos da pátria, não dos ditadores, torturadores, golpistas.

Assisti às partidas na casa de minha vó, Dona Alda, que tinha uma televisão maior do que a nossa. Éramos vizinhos, quase: nós morávamos da esquina da Farrapos com a Pelotas, ela e as filhas –meu avô tinha morrido dois anos antes—no meio do quarteirão, em um sobrado que integrava um conjunto de casas geminadas.

Era a unidade central do grupo, a única feita apenas para uma família –nas outras quatro, duas de cada lado, o mesmo portão dava acesso a uma casa térrea e a outra no andar de cima.

Gostava da seleção, defendia a escalação, as escolhas de Zagallo, o 4-3-3 pela esquerda, com o ponta recuado completando o meio de campo… Acima de tudo, torcia por Everaldo, o Grêmio, na seleção, o brasil no Grêmio. Marques da Silva por sobrenome, era mil vezes melhor que Marco Antônio, mas fora para o México na reserva, único erro do Velho Lobo, mas brutal.

A gente não deve festejar os males dos outros, mas a verdade é que a gurizada gremista ficou satisfeita em saber que o desejo de Zagallo não seria atendido: por causa de uma lesão, o titular virou reserva, e Everaldo assumiu a lateral esquerda do melhor time da história do futebol mundial (Marco Antônio esteve na partidas das quartas-de-final, contra o Peru, mas a vaga voltou para o gremista nos jogos seguintes).

E foi ele, numa versão gremista da história, o responsável pelo lance que definiu aquela Copa do Mundo.

Foi, claro, a partida contra a Inglaterra, segundo jogo da fase de grupo, que chamávamos de oitavas de final, ainda que não fossem mata-mata.

Banks, o maldito goleiro do time britânico, defendia até pensamento. Segurou uma cabeçada de Pelé no que muitos consideram a maior defesa de todos os tempos. Mas nada pode fazer na jogada iniciada pelo lateral esquerdo do Grêmio na época jogando na seleção.

Ainda que muito atacada, equipe da Inglaterra não era fraca não –defendia o título que conquistara no próprio território. Não se acovardava, atacava em bloco, tanto pelas pontas quanto pelo meio.

Um desses ataques pela área central parou nos pés de Everaldo, na entrada da área. Não só destruiu a armação britânica como deu um passe redondo para Clodoaldo, se é que não me falha a memória, e daí foi o que se viu: a bola passando de pé em pé até chegar à intermediária de nosso ataque, rodar de um lado a outro para cair com Pelé, que viu Jairzinho entrando para fuzilar sir Gordon Banks. O cara podia ser o lorde que quisesse, mas aqui tem Furacão, ô meu!

Conclusão perfeita para o lance iniciado por Everaldo, o tirambaço que quase rasgou a rede britânica virou assunto preferido de muitos de nós. A Inglaterra, que muitos consideravam imbatível, vista por outros tantos como fantasma –coisa de quem tem o que hoje se chama de espírito de vira-lata–, foi dominada, derrotada, vencida pela nossa turma.

Enfim, como é de lei, a gurizada não só acompanhava cada partida, discutia todos os lances, analisava as opções de Zagallo e por aí vai –eu gostei muito da decisão de colocar um meio-campista na zaga: o improvisado Piazza fui um paredão e propiciava saída elegante depois de desmontar eventuais ataques adversários.

A gente também fazia nosso própria Copa do Mundo em intermináveis campeonatos de botão, uma jornada com a turma da rua Pelotas e outra disputa entre os colegas do ginásio. Nas duas competições, organizadas por chaves tal qual o Mundial do México, meu time era a Romênia, que nos agradava pelo futebol limpo e solto, além de ser do bloco comunista.

Cada time era montado com muito capricho, botões comprados um a um, cada qual com características adequadas a uma posição. Os que ocupavam a zaga, por exemplo, eram gordos, altos –os meus tinham três alturas, três camadas, cada uma de uma cor–, e não eram círculos perfeitos: a base era maior que o topo, como montanhas. Já os das laterais eram um pouco mais baixos, circulares, com base e topo do mesmo diâmetro, formando um paredão que devolvia qualquer bola rasteira.

A “bola” era um botãozinho de camisa, melhor que as “bolas” de verdade por permitir lances de levantamento e efeito mais dramáticos, capazes de engolir os goleiros feitos de caixa de fósforos cheias com moedas e revestidas com esparadrapo.

Após um ou dois jogos, todos os botões eram lavados numa mistura de água e clorofila ou algo do gênero, para tirar a gordura do manuseio e permitir o bom deslize nos campos de madeira. Uma lixadinha eventual tirava sujeiras mais resistentes, mas era raro. Secavam estavam prontos para outra.

Apesar de eu gostar muito dos meus defesas, especialmente do laterais, vermelhões poderosos e de boa corrida, a estrela do meu time era o centro-avante, o único de quem me lembro o nome: Dumitrache, herói romeno.

Nem sei como era a figura do sujeito, de nome Florea, mas me lembro muito bem do meu número 9, um botão cinza rajado, uma infinidade de cinzas em ondas naquele pequerrucho, apenas uma altura (talvez meio centímetro) e circunferência próxima à de uma moeda de um real.

Ele era rápido, voava, respondia bem ao toque e tinha ótimo relacionamento com a bola. Não servia para chutes de longe, na porrada, mas fazia bonito nas jogadas de revesgueio, o toque sutil para dar curva na bola, seja em encobertas, seja em lances para tirar fora do goleiro.

Eram bons os jogos, todos eles. Meus botões eram muito mais bonitos e capazes do que eu, que fazia com que eles jogassem: não passei de jogador mediano, ganhando aqui e ali, perdendo lá e cá, sem levantar título, mas também sem cair nas primeiras rodadas…

Assim passamos a Copa de 70, torcendo pelo Brasil e lutando, cada uma à sua maneira, contra a ditadura militar.

A denúncia contra meu pai deu em nada, mas foi um retrato da covardia e da mesquinhez que a opressão revelou no país –sim, ao lado do heroísmo, da bravura e da resistência houve dedo-durismo, traição, divisão em famílias, coleguismo destruído pela trapaça.

O suposto crime foi a produção de um livreto escrito por um padre, “A Igreja e a História”, que meu pai fez imprimir no Senai, onde trabalhava, usando o curso de tipografia –“Se usava fazer impressão de textos para o aprendizado dos alunos”, contou ele em uma entrevista que deu á minha filha mais velha, em 2010.

Alguém desconfiou que aquilo poderia ser produção “subversiva”, e a brochura, um opúsculo de menos de trinta páginas em tamanho de livro de bolso, foi encaminhada ao diretor da escola. Incapaz de tomar uma decisão, mas temendo ser tido com cúmplice, o chefe encaminhou a questão para o diretor estadual do Senai que, por sua vez, passou a bola para a presidência da Fiergs –Federação das Indústria do Rio Grande do Sul.

À incompetência para analisar o trabalho –que nem sequer era orientação da Teologia da Libertação, apenas um apanhado histórico da Igreja reforçando os compromissos sociais do catolicismo—somou-se a covardia: o livreto foi encaminho para o Dops, a polícia política da ditadura.

Os meganhas convocaram meu pai. Foi fotografado e interrogado naquela saleta sem cor que ainda existe na memória de minha irmã, que o acompanhou.

A papagaiada ainda virou IPM, Inquérito Policial Militar, para ser analisado pela Justiça Militar, tudo andando lentamente, menos a sem-vergonhice dos burocratas da escola, que trataram logo de demitir meu pai mesmo sem qualquer resultado das investigações ou palavra do Tribunal.

Quando o juiz se pronunciou, decidiu por não aceitar o processo nem o indiciamento na Lei de Segurança Nacional. Reconheceu que não se tratava de publicação subversiva, mas, “por via das dúvidas”, recomendou queimar os livretos. Vá entender tamanha incoerência!!!

Enfim, fomos campeões do mundo.

Salve a seleção!