Antonio Conselheiro ameaçou, alertou, advertiu:

“O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão.”

A profecia mítica virou grito de guerra de um Corisco moribundo, nas cenas finais de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que garantia: “Mais fortes são os poderes do povo!”

Era de Sérgio Ricardo a voz de “Perseguição”, dele era a composição, a trilha toda do filme de Glauber Rocha, emblema maior do Cinema Novo.

Ele também cineasta, Sérgio Ricardo, é o pioneiro, “pai” da música de protesto no Brasil, que tem no seu nascedouro a composição “Zelão”, que é um pé na porta da Bossa Nova e traz para os círculos intelectuais da zona sua carioca as temáticas populares, a voz do morro.

Esse anseio do compositor faz com que ele, ao se separar da mãe de suas filhas, na década de 1970, abandone também a vida na planície praieira: “Eu vou pro morro!”, disse ele a si mesmo, e foi morar na favela do Vidigal, onde vive até hoje.

Essas são algumas das coloridas histórias que Sérgio Ricardo contou para TUTAMÉIA durante entrevista realizada em dezembro passado e que acaba de ir ao ar.

Paladino da música brasileira de raiz, ele falou de seu desencanto com a situação atual da cultura, da economia, da política brasileira. Resume assim o entreguismo que vê: “Não sei o que é pior, se a ditadura militar ou a ditadura americana, do capitalismo”.

Espera e propõe reação: “Boca no trombone, só, não resolve nada. O que resolve é pegar no machado e quebrar a árvore”.

Ele vai fazendo sua parte, com música, pintura, poesia, a sua arte. Na entrevista, lembramos de uma quadrinha em que resume assim a dicotomia brasileira:

“A diferença entre os dois
é semântica e de raiz
Lula INTEGRA a nação
Temer ENTREGA o país.”

Sérgio Ricardo publicara o poema dias antes da entrevista com TUTAMÉIA, quando reafirmou sua opinião sobre Lula: “Ele veio com espírito de transformação. Foi o maior presidente que o Brasil já teve.”

Ter opiniões políticas, participar da política e da resistência democrática, tudo isso faz parte da vida do compositor, que continua ativo e produtivo aos 85 anos: “Estou no meu melhor momento como criador”, disse ele, que acaba de lançar no festival de cinema de Tiradentes seu filme “Bandeira de Retalhos”.

O longa é baseado em um episódio vivido por Sérgio Ricardo na favela do Vidigal, no período da ditadura militar, quando príncipes da especulação imobiliária tentaram botar abaixo os barracos do moradores, num processo de remoção com base na força bruta.

A história foi recontada na entrevista a TUTAMÉIA, assim como diversos outros episódios da carreira de Sérgio Ricardo, que se sente sentir um “estrangeiro” no seu país, por causa de todo o processo de destruição da brasilidade.

Sua compreensão política, contou ele para nós, foi construída pela própria vivência e pelas conversas que teve com outros artistas, companheiros de jornada: “João Gilberto foi quem me falou de Marx pela primeira vez”, revelou, dizendo que o Brasil precisa de uma “revolução cultural”.

Inquieto, fumando ao longo de todo o tempo de nossa conversa, Sérgio Ricardo é todo vitalidade: “Estou inteiramente voltado para a criação”, disse ele, que finaliza um livro de poemas sem deixar de sonhar com seu desejo maior: levar ao cinema “Estória de João-Joana”, parceria sua com o Carlos Drummond de Andrade –trata-se do único cordel escrito pelo poeta.

Fazer cinema, porém, é difícil e complicado, exige muito dinheiro, como voltou a constatar ao longo da produção de “Bandeira de Retalhos”, feito na base de parcerias.

Enquanto o sonho não vem, ele segue na realidade, pintando, escrevendo, compondo e cantando, rodando o Brasil com o show em que se apresenta com os filhos Adriana, Marina e João. E, agora, faz a divulgação de “Bandeira de Retalhos”, em que a canção “Vidigal” quase repete a frase de “Perseguição”:

“Não se brinca com o poder que o poder do povo é bem maior!”

Que assim seja.